Hesaú Rômulo

 

Esses dias que separam a última mordida na ceia de natal e o primeiro champanhe do ano novo são nebulosos. Enquanto você rascunha as metas para 2024, encara resoluto as não concluídas de 2023. Perder peso já parece algo distante, se alimentar melhor também. Mas, de alguma forma estranha, sua cabeça está no lugar. O que terá sido? Será o Brasil caminhando para frente de novo? Ou será que olhar para o Milei na Argentina traz a sensação de “eu sei onde isso vai dar e eu sobrevivi”.

Um ano atrás não havia presidente da república no Brasil. Bolsonaro havia fugido de avião e uma aura de incerteza pairava silenciosamente sobre as cabeças dos brasileiros. Lula assumiria? Se assumir, terá condições de governar? Um ano depois o Brasil tem um presidente da república e o seu antecessor está inelegível. Ponto para a turma dos institucionalistas.

2023 marcou os primeiros contornos do que a literatura vai chamar de Lula 3. Um governo marcado pelo 8 de janeiro, por uma imprensa nacional atuando de maneira incisiva como oposição e muita “sorte” na economia. Um governo montado cheio de retalhos, uns velhos e outros mais velhos ainda. A governabilidade do Lula 3 passa pelos resquícios da dinâmica legislativa que, acostumada com a inércia do período anterior, não quer abrir mão da volúpia de outros tempos. Lira na Câmara e Pacheco no Senado trataram de se alinhar à nova batuta e o ano termina com uma vitória conjugada: reforma tributária. Ao contrário do que diz o algoritmo do Tik Tok da extrema-direita, nada de comunismo ou gênero neutro, a prioridade do governo foi a pauta econômica. A menos que não tenham entregue o seu pedido do Ifood ou taxado suas compras da Shein, o preço da cesta básica, do gás de cozinha e da gasolina estão razoáveis. Ponto para Luiz Inácio e para Fernando Haddad.

Embates dentro do legislativo como a lei do marco temporal e a do saneamento básico são exemplos de como não existe vida fácil para uma coalizão ampla diante de uma configuração parlamentar conservadora. A campanha política é a melhor parte. Governar é outra coisa. Os articuladores políticos de Lula têm tentado, com muitos percalços, encontrar um trânsito com os órfãos do bolsonarismo, os neófitos e os esfomeados do centrão.

A retomada do federalismo brasileiro, com a mesa de negociação entre os governadores dos estados e com os prefeitos sinaliza algo de positivo no horizonte. Os conselhos nacionais estão sendo reabertos, há um interesse em reconstruir as políticas públicas no país de maneira articulada e interinstitucional. A reconstituição das parcerias entre governo federal e os entes subnacionais aponta para um caminho árduo. Os terraplanistas estão em baixa. Ponto para os terraglobistas.

A vida tem sido um pouco mais salubre. Você já consegue assistir a um vídeo do Reinaldo Azevedo no Youtube sem passar mal, as coisas que o Alexandre Garcia fala já não te afetam tanto assim, você acorda em um dia mal-humorado, mas logo abre uma coletânea de pronunciamentos do Sergio Moro e tudo fica bem.

Em 5 de maio de 2023, a direção geral da OMS declarou o fim da Covid-19 como emergência global. Em apenas um ano nos livramos da pandemia e também do Henry Kissinger. Um capítulo duríssimo para uma geração inteira de brasileiros que precisou atravessar uma crise de proporção mundial com decisões importantes nas mãos de pessoas incapacitadas. O Lula 3 caminha para o seu segundo ano frustrando conservadores e esquerdistas. Nenhuma igreja foi fechada, o comunismo não foi implementado e nenhum pai de bicho teve seu cachorro alvo de refeição pelo governo. As pautas progressistas também não avançaram, e muito dificilmente conseguirão avançar seja pela composição do legislativo seja pela habilidade ou interesse do governo em seguir neste rumo. O pragmatismo mais uma vez é o tom da carruagem conduzida por Lula.

Essa não é uma crônica otimista, muito pelo contrário. Mas, aqueles que se guiam pelos sinais dados pelo país, e pelo que cada um de nós enfrentou ao longo do último ciclo político, talvez possam esperar uma boa noite de sono, que nunca fez mal a ninguém. Como é sempre de bom tom encerrar com mensagens otimistas, fica aqui a reflexão do português Fernando Pessoa: “Ficção de que começa alguma coisa! Nada começa: tudo continua. Na fluida e incerta essência misteriosa; Da vida, flui em sombra a água nua. Curvas do rio escondem só o movimento. O mesmo rio flui onde se vê. Começar só começa em pensamento”.

Sobre o autor:

Hesaú Rômulo é cientista político, professor de Teoria Política na Universidade Federal do Tocantins. Doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília

 

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.