Eduardo Grin

 

O cancelamento da comemoração dos 60 anos do golpe militar de 1964 é correta por cinco razões. Em primeiro lugar, não cabe às Forças Armadas celebrar a quebra da democracia e a deposição de um presidente democraticamente eleito. É inaceitável que militares sigam comemorando uma data que representa um período tenebroso de 21 anos da história brasileira marcada por uma dura repressão aos movimentos sociais, prisões arbitrárias, torturas, mortes e a supressão das liberdades civis e democráticas.

Em segundo lugar, os fardados não podem atuar de formar autônoma perante instituições políticas do Estado brasileiro e devem seguir as determinações dos governos democraticamente eleitos. Militares devem obediência à Constituição e não ao governo de turno, de modo que a presunção histórica de se comportarem como um suposto poder moderador para garantir a estabilidade da democracia é desprovida de todo sentido. O presidente Lula sinaliza com a sua decisão que o comportamento das Forças Armadas é subordinado às decisões do poder civil que possui legitimidade democrática.

Em terceiro lugar, nesse momento em que a sociedade brasileira espera ver militares nos bancos dos réus, e severamente punidos pelo seu envolvimento com a trama golpista que culminou no dia 08 de janeiro de 2023 com a invasão da sede dos três poderes em Brasília, a decisão do governo também acerta. A comemoração do golpe militar no passado quando no momento presente estamos prestes a julgar militares golpistas que buscaram impedir a posse do presidente Lula seria um completo escárnio.

Em quarto lugar, o Brasil ainda está muito longe de um real acerto de contas com o passado do regime militar, como ocorreu na Argentina e no Uruguay. O lugar de fardados golpistas que perpetraram crimes como e tortura e o estado democrático de direito é a cadeia. A Lei da Anistia não resolveu essa ferida aberta e a tese dos crimes conexos é um sofisma para não punir quem matou e torturou impunemente nos porões da ditadura militar. O cancelamento do aniversário de seis décadas do golpe militar pelos fardados é um pequeno gesto simbólico na direção correta e pedagógica para a sociedade brasileira. É preciso apagar definitivamente a memória do golpe militar  junto a população. É necessário reeducar militares sobre o seu papel na democracia e o cancelamento da celebração golpista e tomar esse evento como  um ponto de inflexão nessa direção. Será preciso desenvolver uma vacina forte contra o persistente vírus do autoritarismo que ainda sobrevive no país e entre muitos militares. Por isso o símbolo da decisão, quando comparado com a autorização dada pelo governo anterior para que os militares celebrassem o golpe, é um recado alvissareiro para a sociedade brasileira.

Em quinto lugar, a política brasileira segue ainda muito polarizada e evitar manifestações militares que seriam saudadas nas redes sociais e por políticos de extrema-direita é salutar. Ocorrerão manifestações em defesa do golpe militar, mas sem a comemoração das Forças Armadas esse movimento terá menos apoio público.

A sociedade ainda não curou a ferida aberta da ditatura militar e a Lei da Anistia não é razão para esquecer do passado. Sociedades caminham olhando o seu futuro, mas precisam da memória histórica para não cometer os mesmos erros. A ruptura violenta da democracia por meio de um golpe militar deve ser sempre lembrada como forma de celebrar a democracia.

A decisão do presidente Lula de não permitir a comemoração os 60 anos do golpe ainda é tímida, mas se bem aproveitada pela sociedade brasileira pode ser o início de um duro e necessário acerto de contas com o papel das Forças Armadas na democracia.

Porém o governo Lula erra profundamente ao silenciar diante dos 60 anos do golpe. Essa decisão segue a mesma lógica que sempre serviu de senha para a inação do Estado brasileiro e de sucessivos governos democráticos que é o de nada fazer, pois os militares podem sentir-se contrariados, e é bom não os provocar. Essa narrativa, que nada tem sútil, mostra como a democracia brasileira ainda é tutelada pelos fardados que conseguem impor os limites da ação do poder civil sobre temas que consideram interditados ao debate público.

A Lei da Anistia é um exemplo cujo sentido é equivocadamente mencionado pelo presidente Lula ao afirmar que não quer ficar remoendo o passado. Reafirma-se não o direito à memória histórica, mas a busca do esquecimento como se fosse possível apagar a violência de Estado praticada pela ditadura militar. A narrativa da Lei da Anistia opera como se um pacto de silêncio fosse possível, pois ao olhar para frente não há necessidade de revisitar o golpe militar e o terrorismo de Estado implantado durante a ditadura.

Os militares saíram vencedores na transição à democracia tutelada ao imporem os termos desse processo. Os militares seguem como vitoriosos quando 60 anos depois um governo democraticamente eleito deixa de exercer um papel pedagógico essencial para a sociedade brasileira que é o de abordar o que representou a ditadura militar.

Até quando a democracia brasileira seguirá convivendo com o esquecimento forçado desse período trágico de nossa história? Até quando os militares seguirão mantendo sua narrativa vencedora sobre 1964? Sim, vencedora na medida em que, na prática, impede um governo civil de explicar para a população o que foi a ditadura militar. Poderá ser lembrado que ainda há um apoio razoável para visões autoritárias no país e que em contextos de polarização política o silêncio seria recomendável. Poderá ser lembrado que 59% da população entenda que Lula acertou ao vetar manifestações do governo sobre os 60 anos do golpe e 53% opinem que o país não corre o risco de uma nova ditadura, segundo pesquisa hoje divulgada pelo Datafolha.

Com o perdão do clichê, só falta combinar essa última resposta com os russos, quer dizer, com os militares, pois não são poucos os que ainda esperam voltar à ribalta do poder sem terem sido eleitos.

O governo Bolsonaro, a trama golpista para impedir a posse de Lula e o 08 de janeiro mostram que essa questão ainda segue anos luz de distância de ser estar pacificada entre setores relevantes das Forças Armadas. Esse é um problema estrutural e não um fato circunstancial motivado pela ascensão da extrema-direita e a eleição de Bolsonaro.

As Forças Armadas seguem pensando que são um poder moderador e não uma instituição do Estado. Se assim é, eis aqui mais um erro histórico, pois a convivência do poder civil com os militares mostra que a tentativa de apaziguar os ânimos nunca foi suficiente para colocar os fardados no lugar que lhes cabe em uma democracia: sempre devem continência ao poder civil democraticamente eleito. Contudo, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica seguem considerando a sua subordinação a um ministro civil na pasta da Defesa como perda de status ao terem que se submeter a uma hierarquia que consideram indevida, mesmo em governos democráticos.

Ao não permitir que o seu governo aborde, de forma pedagógica e não revanchista o 1964, Lula apequena seu papel como presidente que foi eleito, inclusive, para brecar a possibilidade de recrudescimento do autoritarismo no país. O 08 de janeiro de 2023 mostra como os fardados ainda pensam que podem agir impunemente contra a democracia. Passado mais de um ano da fracassada intentona golpista, militares ainda não sofreram punições na justiça. Repete-se a tendência histórica de não punir os militares, o que se amplia conforme cresce a patente dos envolvidos com o golpismo. O ovo da serpente do autoritarismo seguirá nos assombrando se a democracia brasileira continuar a lidar com os fardados com esse comportamento histórico de impunidade e de esquecimento. Não nos enganemos: a não punição reforça a próxima investida dos militares, e o 08 de janeiro de 2023 mostra que não estamos livres dessa tragédia, e reitera a sua posição como poder moderador cujas traquinagens golpistas devem ser aceitas em nome da estabilidade democrática. A história do país mostra que essa afirmação não é verdadeira e que os fardados, ao não serem punidos ou evitando que a ditadura militar seja revisitada de forma séria, seguirão condicionando os termos das ações de governos democraticamente eleitos naquilo que afeta os seus interesses corporativos.

A verdade histórica é importante para que as sociedades aprendam como lidar com o presente e o futuro. Já dizia Comte que os vivos são sempre, e cada vez mais, governados pelos mortos; tal é a lei fundamental da ordem humana. Deixar de tratar do golpe militar e as suas consequências para a democracia brasileira nos faz prisioneiros de uma história que não morreu e ainda não foi devidamente enterrada.

Tanto é assim que seguimos acertos de contas com um passado que não pode seguir nos governando em nome de uma suposta convivência pacífica com os militares. Como nos ensina a psicanálise, traumas devem ser enfrentados e não apagados. O direito à memória sobre 1964 e a ditadura militar não é uma concessão que os fardados fazem ao país. Por isso é inaceitável que o governo Lula venha postergando a reabertura da Comissão da Verdade cuja função não é punir os militares, mas jogar luzes sobre a história para que a noite que durou 21 anos nunca mais se repita. O país tem o direito a memória e a verdade histórica. As vítimas da violência de Estado perpetrada pelos militares têm esse direito.

O governo Lula tem o dever moral, cívico e político de impedir que novamente a anistia, o esquecimento e a impunidade sejam aplicadas para a ação de militares. Lembrar dos anos 60 anos do golpe e trazer à tona fatos históricos do regime militar na Comissão da verdade serve para reafirmar a democracia. É por isso que temos que falar sobre 1964, mesmo seis décadas depois. A transição à democracia seguirá incompleta enquanto essa página não for definitivamente virada.

Sobre o autor:

Eduardo Grin é cientista político e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV SP.

* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Blog Gestão, Política & Sociedade.