Jorge Alexandre Neves

Luciano Mattar

Dalson Figueiredo

 

“Eu amo viajar, mas odeio aeroporto e morro de medo de avião”. Talvez você se identifique, talvez não. Mas o importante aqui é outra coisa. Em 2019, o governo do então presidente Jair Bolsonaro tomou uma decisão que, para usar um termo bem popular, “quebrou as pernas” da política diplomática brasileira: a revogação da exigência de visto para turistas provenientes de quatro países que, por sua vez, requeriam visto para os cidadãos brasileiros. Anote aí: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão.

O atual governo Lula, por outro lado, reintroduziu a exigência de visto para turistas originários de três dos quatro países mencionados a partir do dia 10 de abril de 2024. A exceção ficou por conta do Japão, uma vez que um acordo de reciprocidade permitirá que cidadãos japoneses visitem o Brasil sem a necessidade de visto. E claro, os brazucas poderão visitar a Terra do Sol Nascente sem a obrigatoriedade de autorização prévia. Nos Estados Unidos se diz “you scratch my back and I'll scratch yours” ou, em bom português, uma mão lava a outra.

Mas, será que o Brasil agiu corretamente ao reinstaurar a exigência de visto para norte-americanos, canadenses e australianos? Dentro do Congresso Nacional, especificamente, membros da oposição argumentam que a reintrodução da obrigatoriedade do visto para turistas desses países acarretará em grandes prejuízos econômicos para o setor de turismo. Isso se deveria ao fato de que a dispensa da exigência de visto em 2019 teve um impacto significativo no aumento do fluxo de turistas provenientes desses quatro países beneficiados pela decisão unilateral do Brasil. Do lado do governo, a justificativa para voltar com a exigência se baseia mais na questão principiológica, ou seja, não há qualquer contestação sobre a hipótese de que a quebra do princípio teria levado a uma maior entrada de turistas e que o fim da exigência irá trazer graves prejuízos econômicos para o Brasil.

Com o intuito de enriquecer este debate com base em evidências científicas, decidimos investigar a hipótese apresentada pela oposição de que a abolição da exigência de visto para turistas dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão resultou em um aumento significativo no fluxo de visitantes desses países. Para examinar essa questão, devemos realizar uma análise contrafactual, incorporando um grupo de controle, especialmente considerando a forte redução no turismo global decorrente da pandemia de Covid-19. Portanto, empregamos uma técnica de aprendizado de máquina conhecida como Knn (vizinho mais próximo) para identificar um grupo sintético de controle, permitindo-nos conduzir uma análise contrafactual adequada. Utilizando os dados sobre entrada de turistas estrangeiros no Brasil em 2018 (ano anterior à mudança da regra), analisamos as informações de todos os países da OCDE, excetuando os quatro países de interesse e dos países latinoamericanos que fazem parte do grupo. A aplicação da modelagem Knn nos levou a selecionar um grupo de controle sintético com três países: Alemanha, França e Itália.

Desenvolvemos, então, a análise contrafactual a partir da estimação de um Modelo Bayesiano de Séries Temporais. Vejamos os resultados.

 

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A curva azul, que chamamos de Tratamento, traz os resultados da composição dos quatro países que passaram a contar com o benefício da dispensa dos vistos. A curva cinza pontilhada, por sua vez, traz os resultados contrafactuais gerados a partir da composição da trajetória ex ante dos países do grupo de Tratamento com a trajetória completa dos três países do grupo de controle sintético. Veja que as curvas são muito parecidas, uma por cima da outra, bem dizer. Usando o jargão estatístico, dizemos então que existe muita sobreposição entre os intervalos de confiança dos grupos de Tratamento e Controle. “Sim, professor, mas e aí?”. Concluímos então duas coisas: a) a modelagem Knn permitiu, de fato, a escolha de um grupo de controle sintético bastante adequado, visto que em 2018 os resultados das duas curvas são praticamente iguais e; b) a partir de 2019, as duas curvas seguiram trajetórias muito semelhantes – com as esperadas quedas até 2021 e uma recuperação em 2022 – e, embora a curva do grupo de Tratamento tenha ficado, a partir de 2019, acima da curva contrafactual, ela esteve sempre dentro do intervalo de confiança desta, o que indica não ser possível afirmar com confiabilidade estatística que a diferença entre as duas curvas se deva a um afastamento significativo da trajetória temporal do grupo de Tratamento em relação ao valor esperado, representado pela curva contrafactual. Ou seja, o mais provável é que a diferença seja explicada por variações aleatórias e não por uma mudança substantiva na trajetória de entrada de turistas dos quatro países do grupo de Tratamento.

Colocando em termos mais simples:  não há fundamentação científica para sustentar a hipótese de que a dispensa de visto para turistas dos EUA, do Canadá, do Japão e da Austrália levou a uma elevação significativa da entrada de turistas desses países no Brasil. Ou seja, é provável que o Brasil não tenha tido ganhos econômicos relevantes com a decisão tomada em 2019. O país abriu mão de um princípio tradicional de suas relações diplomáticas, mas não parece ter obtido benefícios significativos com esta decisão. É o famoso só venha a nós e nada ao vosso reino.

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

Sobre os autores:

Jorge Alexandre Neves é Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG

Luciano Mattar é Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFMG

Dalson Figueiredo é Professor Associado do Departamento de Ciência Política da UFPE

 

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