Leon Victor

 

A assimetria informacional é um dos maiores óbices para a tomada de decisões assertivas. E o julgamento popular, nada mais é do que decidir condenar moralmente uma categoria historicamente mal avaliada e subestimada pela sociedade brasileira. O problema da informação incompleta já começa pelo nome do cargo, Professor do Magistério Superior, como consta na Lei 12.772/2012 e suas posteriores alterações.

Nosso trabalho não é dar aula. É ensinar o que fazemos em nosso cotidiano. Ou seja, pesquisa. Somos, para início de conversa, professores-pesquisadores ou cientistas-docentes, dividindo nosso tempo profissional entre laboratórios e salas de aula. A universidade pública é montada no tripé: Ensino, Pesquisa e Extensão, onde pelo menos todos nós estamos, no mínimo, em dois deles. Mas há outras funções, como ficará claro mais adiante. Antes uma breve nota sobre como é fazer doutorado no Brasil.  

O árduo caminho para se chegar ao doutorado é longo. Depois de todo um curso de graduação, seja de 4 ou 5 ou 6 anos, tem ainda de passar por um mestrado e um doutorado. Para outras categorias profissionais, Mestrado e Doutorado representam o fim de uma carreira, onde a pessoa quer fechar com “chave-de-douro”. Para nós, professores, o doutorado é a formação mínima. Se nada der errado com dados, com a relação orientador-orientando, se nenhum dos dois adoecer do corpo e/ou da mente (e se tiver filhos ou for neurodivergente, é uma luta à parte por empatia e compreensão), a formação mínima para poder disputar um concurso de professor em universidade federal é de seis anos (considerando mestrado e doutorado). O tempo na formação científica é complexo. A bolsa pode não atender às demandas da pessoa e dar aulas na iniciativa privada é ter de escolher entre um salário baixo e uma boa formação. Para quem não tem bolsa ou ela é insuficiente, muitas vezes se opta pelo salário, comprometendo o sucesso de uma carreira acadêmica, que ao nela ingressar, se depara com diversas funções que não estavam bem definidas pelo nome do cargo.

A função docente nos obriga a cuidar da formação e da transformação de estudantes egressos do ensino médio em profissionais altamente capacitados para atuar no mercado, seja ele público ou privado, técnico e/ou científico e/ou docente. Formar pessoas com senso crítico ético, sabendo trabalhar em equipe e conviver com as diferenças e divergências, sejam elas de opinião, posicionamento político ou pelas clivagens das minorias protegidas pela Constituição Federal, pelo bom senso de uma sociedade saudável e pelas políticas públicas afirmativas (mulheres, negros, LGBTQIAPN+, PCDs e neuro divergentes). Tudo isso com estruturas precárias, muitas vezes em ambientes insalubres e sentido as dores e dificuldades de nossos estudantes.

A função científica obriga-nos a uma atualização permanente com o que há de mais recente no campo da pesquisa, a uma produção permanente e de ponta, muitas vezes com custos de nosso próprio bolso para participarmos dos melhores congressos, submetermos nossos trabalhos às melhores revistas científicas. Tudo isso sem financiamento, sem laboratório, sem uma sala com internet de qualidade (em que usamos nosso telefone como roteador), com energia oscilante e sem mobília preparada para ficarmos mais de 8h sentados trabalhando. Esquecem que durante os congressos, temos que reprogramar o conteúdo das aulas, que acordamos às 6h da manhã e ficamos até muitas vezes 14h só debatendo sobre trabalho, indo dormir acima da meia noite para acordarmos novamente às 6h da manhã. Até num jantar de finalização se fala de trabalho. Nem o café da manhã escapa das novidades da ciência e do evento. Sem contar os voos mais baratos aos quais somos submetidos quando há financiamento universitário, viajando de madrugada, dormindo em bancos de aeroportos. Tem turismo? Tem. Duas ou três horas depois do evento em que damos um passeio pela cidade para “conhecer” o país. Essa função científica também nos demanda assumir cargos voluntários como coordenar grupos de trabalho de pesquisa em associações científicas como Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), Associação Latino-americana de Ciência Política (ALACIP) e Associação Internacional de Ciência Política (IPSA). O fato de ser uma função voluntária não nos exime de obrigações e muitas vezes não temos como dizer não, uma vez que esses espaços devem ser ocupados por uma questão de representação institucional/regional. Como qualquer espaço laboral, o espaço científico não está imune a disputas políticas, principalmente quando se trata a mais acesso a recursos, que implica fortemente no sucesso das pesquisas.  

A função de formador de novos profissionais (TCC) e cientistas (dissertações e teses) é extremamente desgastante, pois a contratação de professores se dá em função do curso de graduação. Por isso, o professor-pesquisador acaba tendo mais orientandos de pós do que o máximo permitido. São reuniões e mais reuniões de orientação, leitura de projetos, correção de dissertações e de teses de doutorado que, muitas vezes, por problemas alheios chegam em hora totalmente complicada, quando o docente está com diversas demandas ao mesmo tempo, tendo que trabalhar fora das 8h diárias e, com muita frequência, nos feriados e finais de semana, deixando de lado a família, amigos, entes queridos bem como filhos pequenos e pais idosos dependentes.

A função extensionista é a conexão da universidade com a comunidade externa. Raramente financiada, nos obriga a ter tempo para montar projetos de formação para o público externo, como cursos de curta duração.  Essa função é para abrir as portas de nossa instituição para o mundo, novamente sem estrutura, tendo que dividir o local com a graduação e a pós-graduação, ou tão somente, improvisando.

A função administrativa é a mais complexa de todas. Durante nossa jornada acadêmica só aprendemos a sermos pesquisadores. A docência é aprendida durante o estágio docência ou quando se consegue um concurso público para professor substituto ou dar aula em faculdades privadas. Ninguém aprende a ser gestor em nenhuma fase de treinamento. Também não há cursos preparatórios. Manuais aqui e acolá tentam dar conta dos diversos sistemas disfuncionais à disposição do gestor. Além de ter uma incrível capacidade de resolver (e evitar) conflitos, o administrador precisa cuidar da infraestrutura, demandar os órgãos competentes para restaurá-la (quando for o caso) ou construí-la. Tudo isso sem dotação orçamentária. A burocracia é extenuante. A energia que se gasta na burocracia permite que o gestor tenha redução de carga horária de sala de aula. E a grande maioria deles passa a ter baixa produção. Para se manterem como pesquisadores de ponta, acumulam sala de aula com pesquisa e orientação, fazendo três coisas completamente diferentes. Ser gestor não é obrigatório, mas exige um senso de altruísmo, de coleguismo e de coletividade de ajudar o time para que aqueles e aquelas que estão com alta produtividade, possam mantê-la.

Dizer que professor não trabalha porque só enxerga com carga horária laboral as 2h de sala de aula, é o mesmo que dizer que um cantor só trabalha na hora que canta, que uma bailarina só trabalha quando dança e que um advogado só trabalha quando escreve um documento. Que o trabalho de um ceramista é a cerâmica, que o trabalho de um poeta é a poesia escrita. É dizer que o trabalho da natureza é apenas a floresta pronta. Onde estão os anos de formação, de dedicação, de aperfeiçoamento e de prática?

A paixão profissional muitas vezes nos tira a paixão pela diversão. Ficamos tão imersos em nossas funções que não percebemos a necessidade de parar, de nos divertirmos. Isso cria e agrava sérios problemas de saúde mental, mantendo afastados todos os problemas pessoais da vida, como relacionamentos, cuidado com idosos e/ou filhos. Dizer que não trabalhamos não é apenas injusto, é ferir profundamente quem se dedica criar e manter no tempo os principais investimentos de uma sociedade: ciência, educação, cultura e inovação.

Para terminar, a tabela a seguir mostra um pouco da remuneração de uma carreira mal compreendida, desrespeitada e muitas das vezes, humilhada.

Tabela 1 – Comparação entre carreiras da União Federal com salários iniciais para 2024

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* a exigência de graduação foi decidida pelo STF em 1º de março de 2024. Antes era nível médio.

** para ser efetivado na carreira diplomática e ser nomeado terceiro secretário, o servidor tem de fazer o curso de formação do Instituto Barão de Rio Branco. Mas ele presta o concurso e entra na carreira apenas com graduação.

*** a carga horária pode variar a depender da missão diplomática, do local de lotação etc., mas será compensada mediante gratificação ou algo equivalente.

**** salários brutos (sem descontos de impostos e previdência), sem auxílios, para o início de carreira.

***** salário abaixo do piso nacional da educação básica, para a mesma titularidade e carga horária, que é de R$ 4.580,57 (Portaria MEC n. 61/2024).

Observação 1: Para a maioria dos concursos de Professores, o Doutorado é em área específica e, muitas vezes, exige-se graduação específica com doutorado específico.

Observação 2: Os cargos de analista e técnico judiciários podem ser para qualquer graduação ou graduação específica, mas o salário é o mesmo. Eles são os únicos pertencentes ao Poder Judiciário. Todos os demais são do Poder Executivo da União.

Observação 4: Excluiu-se os cargos do Poder Legislativo por se concentrarem em Brasília, cujo custo de vida é, em média, um dos mais altos do país.

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

Sobre o autor:

Leon Victor de Queiroz Barbosa é Advogado, Cientista Político, Professor da Universidade Federal de Pernambuco