Ricardo Rocha de Azevedo 

Robson Zuccolotto

 

A calamidade pública no Estado do Rio Grande do Sul que temos acompanhado nas últimas semanas tem se tornado evento recorrente no país. Podemos citar outros episódios como as enchentes na Região Serrana do Rio de Janeiro (2011), Minas Gerais (2020), Região metropolitana de Pernambuco (2022), Rio Grande do Sul (2023), e no Litoral do Estado de São Paulo (2023), entre vários outros.

Esses eventos são acompanhados de grande comoção popular e ampla divulgação pela mídia, e mais recentemente, com imagens em tempo real através das redes sociais. Considerando o histórico do país de baixos investimentos em mecanismos de proteção a desastres, os impactos geralmente são catastróficos, tanto em vidas, quanto na infraestrutura pública e privada.

Um dos mecanismos de apoio que têm se tornado comum durante as catástrofes é a realização de campanhas de doações, com recebimento de materiais das diversas regiões do país, transportados por caminhões, aviões e até navios e, mais recentemente, com recebimento de dinheiro por meio de pix. Esse tipo de recebimento tornou-se extremamente simples de organizar, dada a ampla facilidade de divulgação pelas mídias sociais e imprensa tradicional, além da facilidade de se realizar a transferência, que pode ser feita em qualquer horário e em qualquer dia da semana.

No entanto, passado o momento central da comoção popular que o evento causa, geralmente começam a aparecer denúncias de desvios ou mal uso dos recursos, como as relacionadas às enchentes de Teresópolis, em 2011, e São Sebastião, em São Paulo, no mesmo ano, e as relacionadas ao próprio evento em causa, como no caso do Rio Grande do Sul, onde algumas denúncias isoladas já começam a aparecer, como a de desvios em Rocas Sales ou mesmo na organização oportunista das campanhas de doação.

Por isso, apesar da grande comoção e da importância da solidariedade e das doações de diversas naturezas, os governos e as organizações da sociedade civil que organizaram as campanhas devem se organizar para realizar uma clara prestação de contas dos recursos recebidos. Isto porque, apesar de o momento ser de comoção e solidariedade para a maioria das pessoas, existem aqueles cujo comportamento será de oportunismo, ainda que sobre a tragédia dos outros.

Apesar de seus limites teóricos, boa parte da literatura da Public Choice já abordou esse comportamento e muitas das discussões recentes sobre transparência e accountability governamental se fundamentam na premissa do comportamento oportunista do agente econômico auto interessado, que precisa ser controlado, tornado a transparência um dos pressupostos deste processo de controle. Sob essa lógica, os governos devem prestar contas aos stakeholders, sobretudo de ordem financeira e de desempenho.  

A literatura tem mostrado de forma recorrente que organizações que não atendem a padrões mínimos de transparência e adoção clara de mecanismos de accountability tendem a receber menor volume de doações voluntárias (ex. Becker, 2018; Azevedo & Aguiar, 2021). Ou seja, se o governo (ou entidade) que está recebendo os recursos não se organizar para uma divulgação detalhada preferencialmente em formato eletrônico, existe grande tendência a perder apoio social, dada a incerteza gerada e abrindo espaços inclusive para fake-news.

Apresentando uma conotação mais ampla, os termos transparência e accountability são encontrados na literatura sobre teoria democrática representativa. Vista como um ciclo amplo, que vai desde as eleições, passa pelo controle durante os mandatos e se fundamenta num conjunto de direitos intergeracionais, essa teoria entende que a representação é um processo político que conecta sociedade e instituições (Estado), uma vez que na democracia representativa o povo soberano delega poder ao representante, mas tem também o poder negativo de o destituir. Nesse ciclo estendido, a transparência também é condição central para o processo de accountability, uma vez que quando desconhecidos os atos e omissões do representante, o povo fica limitado em seu direito negativo.

Assim, independentemente de a literatura ser de viés neoliberal ou democrático, a transparência se torna central em eventos como o que estamos vivendo, uma vez que, seja pelo comportamento oportunista de agentes econômicos ou pelo direito de a sociedade controlar seus representantes, reconduzindo-o ou não a seus cargos, sem ela, o controle não pode ser efetivo. E, em casos de calamidade pública como a que estamos vivendo, esse controle não deve ser apenas sobre governantes, mas sobre toda e qualquer entidade que se aproprie de recursos da sociedade para realizar ações.

Tomando-se como base o caso do Rio Grande do Sul, em maio de 2023 após grande enchente no ano anterior (54 mortos) houve uma divulgação de campanha para recebimento de apoio financeiro por pix. Na campanha anterior foram recebidos 5,5 milhões, enquanto nesse ano foram recebidos mais de 100 milhões até 14 de maio, ou seja, 18 vezes maior em menos de 12 dias.

O Governo do Estado do RS tem adotado mecanismos de governança, como a criação de um Comitê Gestor da conta SOS Rio Grande do Sul (Decreto Estadual 57.601/2024) com a participação de entidades do Governo, terceiro setor, setor privado, e inclusive o Tribunal de Contas. Iniciativas interessantes têm sido tomadas, como a divulgação de um mapa georreferenciado e uma planilha com a distribuição dos beneficiários por município. Também estão sendo divulgadas as decisões de gastos tomadas pelo Comitê Gestor. Apesar de o governo estar tentando dar algum grau de transparência às doações e às ações delas decorrentes, muitas entidades sem fins lucrativos também estão inseridas nesse processo e, nesse caso, não se têm informações sobre os recursos recebidos e suas respectivas destinações.

Apesar do momento não ser necessariamente de questionamentos amplos sobre governança, dado que a emergência inicial é salvar vidas e fornecer ao menos um bem-estar à população, o episódio abre espaço para essa discussão. Alguma legislação deveria detalhar procedimentos mínimos a se tomar evitando-se depender de iniciativas dos governos com a população afetada? Mecanismos automatizados poderiam ser desenvolvidos e disponibilizados para essa finalidade, permanecendo prontos para o uso nessas situações? Como exigir de entidades do terceiro setor um detalhamento dos recebimentos e das ações desenvolvidas, de forma que fique claro que os recursos não foram usados indevidamente, por oportunismo ou má fé. Como discutido por Ahrens e Ferry (2021,p.13) ao tratar da Pandemia Covid-19 “os governos em todo o mundo precisam aprender como usar melhor as informações para lidar com as crises, porque não há razão para acreditar que a Covid-19 foi the big one” - a maior. Ou seja, outras tragédias virão, e é necessário pensar em democratizar a informação sobre as doações e seus usos e limitar os oportunismos dos agentes inescrupulosos.

Referências

Ahrens, T., & Ferry, L. (2021). Debate: What support should local government expect from accounting during a sudden crisis such as Covid-19? Public Money & Management, 41(1), 12–14. https://doi.org/10.1080/09540962.2021.1825163

Azevedo, S. U. de, & Aguiar, A. B. de. (2021). Paying Enough but not Paying too Much When There is no Third-Party Endorsement: Executive Compensation and Individual Donations for Nonprofit Organizations. VOLUNTAS: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organizations, 32(2), 477–487. https://doi.org/10.1007/s11266-020-00225-6

Becker, A. (2018). An Experimental Study of Voluntary Nonprofit Accountability and Effects on Public Trust, Reputation, Perceived Quality, and Donation Behavior. Nonprofit and Voluntary Sector Quarterly, 47(3), 562–582. https://doi.org/10.1177/0899764018756200

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

Sobre os autores:

Ricardo Rocha de Azevedo é professor do Departamento de Contabilidade na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEARP-USP). E-mail: ricardo.azevedo@usp.br

Robson Zuccolotto é professor do Departamento de Contabilidade na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: robsonzuccolotto@gmail.com