Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

No fictício estado de Arniqueiras, a Secretaria de Gestão Pública desenvolveu um programa de aperfeiçoamento de líderes, voltado para diretores, coordenadores e gerentes, com disciplinas avulsas sobre diversos temas correlatos à liderança no setor público. Uma forma de modernizar a gestão e de engajar os dirigentes, alinhado as mais recentes práticas de aprimoramento da gestão.

Almerinda, coordenadora do projeto, na sua terceira edição, inseriu uma inovação, fruto de uma discussão que tivera em sala de aula, durante uma disciplina do seu doutorado. Incluiu um estágio supervisionado de cinco manhãs, durante um mês, para os alunos do curso, inseridos em uma nova disciplina do programa intitulada: “Construindo a empatia”.

A disciplina constava de um estágio no período da manhã durante uma semana em quatro blocos: no presídio estadual; em uma escola de educação básica dentro de uma comunidade; em um hospital estadual com emergência; e em um abrigo para população em situação de rua. Divididos e revezando, para ter no máximo dois alunos por instituição, estes seriam acompanhados por um facilitador do programa e deveriam desenvolver um texto sobre a experiência, a luz de discussões teóricas.

Ao ser implantada, a disciplina nova foi um sucesso. Mexeu com pontos de vista, com verdades já consagradas. Alguns alunos reclamaram de ter que ir a lugares em condições tão precárias, outros desistiram do cargo de chefia, e alguns pediram para trabalhar nos lugares visitados. Todas essas questões foram trabalhadas em grupos focais no programa, discutindo temas correlatos como a qualidade do serviço público, controle e orçamento.

A história é fictícia, mas os problemas advindos do insulamento burocrático (Nunes, 2003), da falta de empatia dos profissionais do serviço público, em especial em algumas categorias, são bem reais. Não enxergar a lógica do usuário, do programa e da comunidade na qual ele está inserido é um fator de insucesso das políticas públicas, criando muros ao invés de pontes.

Em um exercício imaginativo, pode-se indicar que esse fenômeno tem suas causas por conta de alguns fatores, dentre outros: i) distanciamento dessa força de trabalho das políticas públicas na ponta, pois geralmente não são usuários destas; ii) foco excessivo na aderência estrita e acrítica a normativos e regras detalhadas como indicativo de sucesso; iii) o fenômeno do servidor estudar realidades de países muito diferentes do Brasil na busca de soluções que não dialogam com as nossas questões; e iv) carência de uma cultura de diversidade e de representatividade de grupos invisibilizados. Vamos analisar um pouco desses fatores.

É comum que algumas categorias no serviço público, mormente as que tem melhor remuneração, não sejam usuários dos serviços prestados. Tem o filho em escola particular, não usam a saúde pública e não são beneficiários de programas sociais. Um fenômeno complexo, derivado da dificuldade de universalidade desses sistemas, e supor que a solução seja obrigar os servidores a se utilizar essa rede é de um reducionismo ingênuo.

Na pandemia viu-se muita gente ir a um aparelho público de saúde pela primeira vez tomar vacina, e o fenômeno climático recente do aumento de enchentes levam pessoas a se abrigar em escolas públicas diferentes de sua realidade. O Estado para muitos é desconhecido de poucos, e isso gera não só o afastamento do olhar de um grupo específico em relação ao serviço público, mas também do subgrupo da elite da população, que tem grande poder de influência.

Esse afastamento dos serviços prestados à população em geral pode trazer o fenômeno do estranhamento dessas realidades, e assim gerar o direcionamento do olhar do gestor público para prioridades dissonantes, retirando o beneficiário da equação, o que dialoga com um outro fenômeno dentro da discussão da categoria insulamento burocrático, que é o apego exacerbado a normas.

O mundo da adesão ao micro fundamento de normativos de forma acrítica é o paraíso da consciência de muitos servidores públicos, acreditando cumprir ali o seu dever. O que se agrava em um país como o Brasil, de profunda matriz cartorial. Desaparece a política e o cidadão, e surge apenas a norma, que deve ser cumprida, de forma descontextualizada, na figura do burocrata virtuoso trazido alegoricamente por Max Weber (1864-1920).

Essa questão dialoga com a  definição de burocrata de nível de rua (Street Level Bureacracy), uma categoria fundamental na implementação de políticas públicas no contexto federativo, trazida por Lipsky (2010), e que trata de profissionais que atuam na ponta da implementação das políticas, com autonomia que os faz adaptar os objetivos das políticas as suas capacidades, interpretando regras e ajustando realidades com certo grau de inovação, e livres de uma supervisão mais amiúde, fortalecendo inclusive a participação e a legitimidade na gestão local.

Lipsky (2010) aponta que os profissionais mais próximos a população, como médicos, assistentes sociais e professores, modificam seus objetivos para ajustar melhor a sua performance, reduzindo a tensão de suas lacunas técnicas, para acordar níveis adequados de serviços, construídos a partir da concepção de seus trabalhos, em uma forma de quebra desse insulamento derivado do apego excessivo a normas extremamente detalhadas, situação por vezes reforçada por órgãos fiscalizadores.

Um outro fenômeno que contribui para esse insulamento burocrático se apresenta nos temas que os servidores públicos buscam no aprimoramento da sua qualificação. Se reflete em uma massiva procura por estudos baseados em experiências de países do norte global no mestrado e no doutorado, países esses com desenhos jurídicos e políticos diversos do Brasil, e que já superaram muitas mazelas nas quais ainda nos debatemos como dívidas históricas.

Precisamos, dentro dessa discussão, de servidores estudando sobre países com similaridades em relação as nossas questões, como por exemplo o México, a Índia, a África do Sul, o Chile, a Argentina, a Colômbia, alguns destes com matriz federalista, acentuada desigualdade, e déficits sociais gritantes, o que contribui para ali surgirem soluções a serem mimetizadas, fugindo de um positivismo evolucionista em relação aos países, seus problemas e soluções, como se houvesse um ideal a ser alcançado por meio de caminhos padronizados.

 A empatia se manifesta nesses estudos dos países que são mais próximos da realidade brasileira, e com isso se evita também a importação acrítica de modelos europeus e estadunidenses, que tem muita dificuldade de implementação no país, por vezes dissociados dos problemas reais, revelando com isso ainda um traço de subalternidade e de falta de identidade, nas linhas de Guerreiro Ramos (Filgueiras, 2012).

Por fim, mas não menos importante, tem-se a carência de uma cultura de diversidade e de representatividade da população historicamente invisibilizada, em especial a negra, indígena e de pessoas com deficiência, dentre outras. Uma cultura presente em normas, artefatos e discursos, para se reverter a percebida participação reduzida de integrantes desses grupos nos cargos da burocracia estatal mais qualificados e com maior poder formal. Empatia é se colocar no lugar do outro, mas se torna custoso se colocar em um lugar que não existe no seu próprio imaginário, o que reforça um aspecto pragmático da questão da representatividade e da diversidade.

A sub-representação de grupos invisibilizados da população em espaços de desenho e implementação de políticas públicas, em situações de caráter estratégico e de liderança, tem efeitos no cotidiano que são imperceptíveis em uma análise mais ampla, mas que  se manifestam nas sutilezas de falas, prioridades e medidas administrativas, e ainda que a inserção desses grupos pareça, aparentemente, em alguma medida, ser inócuo e mantendo a  reprodução das estruturas sociais vigentes, que são poderosíssimas, pode-se afirmar que um saldo positivo fica dessas iniciativas no médio e longo prazo.

A empatia, como posto no presente artigo, em suas múltiplas dimensões, para além de ser um valor democrático moderno que dialoga com a representatividade e a diversidade, tem um aspecto pragmático que ressignifica a qualidade das políticas públicas ofertadas ao cidadão, por permear as reais necessidades desse beneficiário, captando contextos e limitações, o que é um mecanismo de fortalecimento do próprio ideal democrático, que vive uma crise mundial (Przeworski, 2019). 

Para mitigar o insulamento louvam-se iniciativas recentes como o Concurso Nacional Unificado recém-lançado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI); legislações prevendo cotas raciais e para pessoas com deficiência para o ingresso e chefia no serviço público, extensiva a outros grupos invisibilizados; campanhas internas nos órgãos e entidades que promovam esse debate;  exigência de experiência profissional nos concursos,  e ainda, estratégias de formação de líderes e de cursos de formação de novos servidores que trabalhem temas relacionados à diversidade e que estimulem a empatia com a população, como no exemplo fictício citado.

No país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, nas linhas do nosso querido Jorge Benjor e que inspira o título desse artigo, para se obter a sinergia necessária nas interações entre estado e sociedade, um dos motores do desenvolvimento, é preciso romper o insulamento burocrático em suas diversas roupagens, para que a qualificação não se traduza em afastamento, e que a diversidade do país em uma visão ampla não se veja pasteurizada por um serviço público monotônico e sem empatia, onde o povo seja um elemento visto como um entrave.

Referências

FILGUEIRAS, Fernando de Barros. Guerreiro Ramos, a redução sociológica e o imaginário pós-colonial. Caderno Crh, [S.L.], v. 25, n. 65, p. 347-363, ago. 2012. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0103-49792012000200011.
LIPSKY, Michael. Street-level bureaucracy: dilemmas of the individual in public service. 30th anniversary expanded edition. New York: Russell Sage Foundation, 2010.
NUNES, Edson de Oliveira. A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ENA, 2003.
PRZEWORSKI, Adam. 2019. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar.

 

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

Sobre o autor:

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ)