Alexandre Gomide

Celina Pereira

 

Na formulação e implementação de políticas e entrega de bens e serviços públicos, a "caixa de ferramentas" é composta por uma diversidade de instrumentos, como pessoas, organizações, instituições, tecnologia e orçamento. A efetividade de qualquer iniciativa de transformação do Estado depende da consideração cuidadosa do papel e da interação complexa entre esses componentes. Ignorar essa complexidade não só compromete o sucesso das iniciativas, mas também promove expectativas irrealistas entre os envolvidos.

Desafios atuais da Administração Pública

Resultante de reformas ultrapassadas, mal desenhadas ou incompletas, a Administração Pública brasileira ainda padece de diversas fragilidades e disfunções, como aquelas decorrentes da fragmentação institucional, que resulta na multiplicação e sobreposição de organizações e tipos organizacionais. A atual estrutura do aparelho do Estado é composta por uma variedade de entidades da administração direta e indireta, incluindo autarquias especiais, fundações públicas, empresas estatais, sociedades de economia mista, organizações sociais e organizações do serviço social autônomo. Cada uma delas possui diferentes graus de autonomia administrativa e financeira, além de responsabilidades específicas.

Essa variedade, embora reflita a complexidade das funções governamentais, gera problemas de coordenação e supervisão, contribuindo para a fragmentação do aparelho estatal, que dificulta a implementação de políticas públicas coesas e eficazes. A proliferação de formas jurídicas distintas também compromete a transparência e a accountability, criando um ambiente organizacional confuso e desalinhado com uma visão estratégica em nível sistêmico. Como resultado, a Administração Pública brasileira se torna incapaz de cumprir seu propósito maior - responder adequadamente aos complexos desafios da sociedade contemporânea.

Para resolver esses problemas, o governo Lula, por meio do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) e da Advocacia-Geral da União (AGU), criou uma Comissão de Especialistas para debater e propor uma nova legislação sobre a gestão pública brasileira, incluindo sua estrutura organizacional. As discussões têm como objetivo atualizar o Decreto-Lei nº 200, de 1967, que trata da organização da Administração Federal e da reforma administrativa implementada à época.

Histórico do Decreto-Lei 200 e suas implicações

O Decreto-Lei de 1967, ainda em vigor, foi um marco na organização da Administração Federal brasileira, estabelecendo a estrutura e o funcionamento dos órgãos da administração e definindo as categorias de entidades que a compõem, como a administração direta, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas. O decreto conferiu autonomia administrativa e financeira às entidades da administração indireta, promovendo a descentralização e maior agilidade na gestão pública. Contudo, devido à proliferação excessiva de organizações, especialmente de empresas estatais, e à falta de accountability, a Constituição Federal de 1988 trouxe mudanças para equilibrar a descentralização promovida pelo Decreto-Lei com a necessidade de controle, transparência e responsabilidade. A CF/1988 praticamente igualou as autarquias e fundações em vários aspectos em relação às organizações da administração direta, a exemplo dos temas de compras públicas, pessoal, execução orçamentária e controle. Ao serem submetidas às mesmas regras aplicadas aos órgãos, as entidades viram restritas suas autonomias e flexibilidades, características presentes na gênese de sua criação.

Tentativas de reforma e seus resultados

Em 1995, influenciado pela onda da Nova Gestão Pública, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) propôs alterar a estrutura e o funcionamento dos órgãos da Administração Pública, redefinindo as categorias de entidades que a compõem por meio da criação de Agências Autônomas e Organizações Sociais. A proposta visava promover a autonomia e flexibilidade das entidades estatais, ao mesmo tempo em que buscava descentralizar e transferir serviços não exclusivos do Estado para o setor público não estatal. O objetivo era reorganizar a Administração Pública, tornando-a mais eficiente e orientada para resultados.

As Agências Autônomas, ou Agências Executivas, seriam as entidades que substituiriam as autarquias e fundações responsáveis por atividades exclusivas do Estado, sendo administradas com base em contratos de gestão. Já as Organizações Sociais são entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder Executivo, recebem autorização legislativa para celebrar contratos de gestão com o governo para a prestação de serviços não exclusivos do Estado, recebendo recursos públicos e podendo obter outras fontes de financiamento.

Contudo, a reforma gerencial de 1995 não obteve o sucesso esperado, com exceção da promulgação da Emenda Constitucional 19 e do modelo de Organizações Sociais, que se proliferou nos Estados da federação. Poucas entidades se transformaram em agências executivas, mas muitas agências reguladoras foram criadas no formato de autarquias especiais.

A necessidade de um novo ecossistema organizacional resiliente e ágil

Faz-se, portanto, necessário estabelecer parâmetros claros e coesos para a atuação das organizações públicas, promovendo a racionalização, simplificação e robustez das estruturas organizacionais da Administração Pública. Isso aumentará suas capacidades, resiliência, agilidade e transparência na implementação de políticas, provisão de bens e serviços e promoção das inovações necessárias para enfrentar os desafios complexos da sociedade contemporânea.

O Estado é, por excelência, o ator capaz de resolver problemas de ação coletiva, enfrentando grandes desafios da sociedade brasileira, como as mudanças climáticas, desigualdades sociais, desindustrialização precoce e falta de confiança no regime democrático. Portanto, por meio de suas organizações, o Estado desempenha um papel crucial na promoção do desenvolvimento econômico, bem-estar social e sustentabilidade ambiental. É importante lembrar que o Estado não apenas corrige as falhas de mercado, mas também cria mercados por meio da inovação.

As organizações públicas são as entidades responsáveis pela implementação de políticas, provisão de bens e serviços, regulação e fiscalização de mercados, e financiamento de projetos e atividades sociais e econômicas. Para exercer essas funções, as organizações públicas devem encontrar um equilíbrio entre resiliência e agilidade, entre capacidades e habilidades, de modo a manter regras, procedimentos e estruturas sólidas e consistentes, ao mesmo tempo que se adaptam rapidamente às mudanças e respondem prontamente às novas demandas.

Parafraseando Rainer Kattel, precisamos de diferentes tipos de organizações públicas, tais como as de tipo “camelo”, que são prestadoras de serviços, resilientes e capazes de manter a continuidade na prestação dos serviços básicos; as organizações “leão”, que são executoras, focadas em objetivos e entregam resultados de maneira ágil; e também as organizações do tipo “criança”, que são inovadoras e colaborativas, voltadas para o experimentalismo e a busca de novas soluções para os complexos desafios sociais.

Propostas para o futuro

É necessário elaborar e instituir as bases para um ecossistema de organizações públicas capaz de garantir a resiliência e a agilidade necessárias para enfrentar problemas sociais complexos e promover transformações inclusivas e sustentáveis. Essas organizações devem ter diferentes tipos de funções, capacidades e habilidades. A compreensão dessas necessidades é essencial para a formulação de estratégias eficazes e para o estabelecimento de novos parâmetros claros e coesos para a atuação das organizações públicas.

Ressalte-se que tal ecossistema de organizações ágeis e estáveis parte de bases conceituais diferentes da Nova Gestão Pública. Esta está orientada por uma visão gerencialista do Estado, que prioriza a eficiência em detrimento da eficácia a longo prazo, tendendo a fragmentar as estruturas organizacionais e descentralizar as decisões. Isso, onde aplicado, resultou em uma coordenação deficiente e na perda de visão estratégica em nível sistêmico, concentrando-se em resultados de curto prazo, o que levou à perda de capacidades estatais, especialmente no contexto da inovação e do desenvolvimento econômico sustentável.

Acionar adequadamente os instrumentos para a produção de políticas públicas passa, em grande medida, pela reorganização e redefinição da estrutura e do funcionamento dos órgãos da Administração Federal, bem como das categorias e tipos de organizações capazes de enfrentar de modo eficaz e democraticamente legítimo os desafios contemporâneos e promover os direitos sociais e os objetivos do desenvolvimento sustentável.

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

Sobre os autores:

Alexandre Gomide é diretor de Altos Estudos da Enap

Celina Pereira é secretária-adjunta para Transformação do Estado do MGI