Bruno Lazzarotti Diniz Costa

Anna Clara Ferreira Mattos

 

Na quarta-feira, 12 de junho, foi aprovado em regime de urgência o Projeto de Lei 1904/24 - conhecido como PL do Estuprador ou PL do aborto - que equipara o aborto em gestação com mais de 22 semanas ao homicídio, mesmo nos casos de estupro e, pior, mesmo que as vítimas do estupro sejam crianças e adolescentes. A pena para o aborto pode chegar a 20 anos caso o projeto seja aprovado, mesmo para as situações de gravidez resultante de estupro e em que o aborto é o único meio para salvar a vida da mãe, que são casos atualmente permitidos pelo Código Penal. Essa pena é maior que a própria pena de estupro, que vai até 10 anos, de modo que, caso a vítima de um estupro opte por não prosseguir com a gestação do filho de seu abusador, a pena da vítima pode chegar a duas vezes a pena do estuprador.

Em um claro movimento de ataque aos direitos das mulheres e meninas, a votação do regime de urgência ocorreu de forma questionável do ponto de vista regimental e sem transparência, para falar o mínimo: Arthur Lira e os defensores do PL utilizaram o regime de votação simbólica, em que não há registro individual de votos, além de esta não ter sido anunciada previamente, como é a exigência do Regimento da Câmara.

Os 33 deputados que propuseram o PL estão indo na contramão de especialistas, profissionais da saúde, movimentos sociais e até mesmo da tendência internacional de expansão dos direitos reprodutivos e sexuais de mulheres e meninas. Enquanto nos últimos 30 anos mais de 60 países caminharam em direção à liberalização de suas leis sobre o aborto, apenas 4 tornaram-as mais punitivas (Center for Reproductive Rights, 2024). Na América Latina, o Brasil já é um dos países mais atrasados em relação ao tema: enquanto nossos vizinhos como Argentina, Uruguai e Colômbia permitem o aborto a pedido da gestante, o Brasil corre o risco de retroceder a penas mais agressivas às mulheres que optarem pelo procedimento. O mapa abaixo, produzido pela ONG Centro para os Direitos Reprodutivos, categoriza os países em relação ao grau de restrição ao direito da mulher em decidir sobre o próprio corpo nos casos de gravidez.

Mapa 1 - Classificação dos países quanto à restrição à realização do aborto

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Fonte: Center of Reproductive Rights

No mapa, as áreas em verde são países onde o aborto é permitido a pedido da gestante, em azul estão aqueles que permitem por amplos motivos sociais ou econômicos, em amarelo para preservar a saúde, em vermelho países em que é permito apenas para salvar a vida de uma pessoa (caso do Brasil) e em vinho os países em que é totalmente proibido. O estudo da ONG ainda mostra que aproximadamente 39 mil pessoas morrem por ano em consequência de procedimentos inseguros de aborto, reforçando a necessidade de que as legislações caminhem em direção à garantia do aborto seguro, legal e gratuito. A restrição legal ao aborto causa também perdas de oportunidades educacionais e econômicas para meninas e mulheres, que são obrigadas pelo Estado a prosseguir com a gravidez indesejada, comprometendo sua disponibilidade para estudar e trabalhar. O aborto, portanto, não é apenas uma garantia da escolha individual sobre o próprio corpo (também muito importante), mas um direito básico para assegurar vida digna e saúde para todas as pessoas que engravidam.

Para além de estar evidente que o projeto vai na contramão da tendência global de garantia dos direitos das mulheres, ela demonstra a desconsideração para com a vida de meninas e mulheres violentadas, classificadas pelos 33 deputados que apoiam o projeto como merecedoras de uma pena maior do que as dos próprios estupradores. De acordo com os dados divulgados pelo Anuário Brasileiro da Segurança Pública (Gráfico 1), 61,4% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável em 2022 tinham no máximo 13 anos e 88,7% eram mulheres.

Gráfico 1 - Faixa etária das vítimas de estupro e estupro de vulnerável (Brasil, 2022)

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Fonte: Anuário Brasileiro da Segurança Pública (2023)

Entre 2012 e 2022, segundo dados do DATASUS, O Brasil registrou 247.293 partos por meninas até 14 anos, cuja gravidez é, segundo a lei, por definição resultante de estupro de vulnerável. Mas os defensores do PL do Estupro parecem empenhados em piorar estes números. Criminalizar o aborto no caso de estupro, portanto, é colocar em risco a vida de milhares de meninas e mulheres que são violentadas e não terão acesso ao aborto legal, tendo que recorrer a métodos inseguros e que, como mostram os dados de todo o mundo, levam a vida de milhares de pessoas todos os anos. Caso sigam com a gravidez forçada, privadas da escolha segura, essas mulheres e meninas terão suas oportunidades educacionais, econômicas e sociais limitadas, além de carregarem não apenas o peso de uma escolha que não foi delas, mas também o fruto de uma violência.

É nessa linha que movimentos sociais, especialistas no tema e instituições que defendem a vida das mulheres estão se mobilizando contra esse retrocesso.  Na quinta-feira, 13 de junho, ocorreram atos contrários ao PL em diversas cidades do Brasil, incluindo Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Além disso, no site da Câmara dos Deputados, a enquete pública realizada sobre o PL 1904/24 mostra que 88% das pessoas se manifestaram como contrárias ao projeto, correspondendo a 728.929 votos contrários.

O que todos esses dados mostram é que a votação da urgência do PL foi antidemocrática e sem transparência, mais que isso o projeto ataca a humanidade e dignidade básica de mulheres e meninas violentadas, ao imputar a elas uma pena maior que a de seus abusadores. Na direção oposta à equidade de gênero, aos direitos humanos e aos direitos das crianças e adolescentes, o que Arthur Lira propõe com essa votação é um ataque misógino que tem na mira crianças indefesas.

Referências

Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/>

Câmara aprova urgência para projeto que equipara aborto de gestação acima de 22 semanas a homicídio. Agência Câmara de Notícias, 12 jun. 2024. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/1072249-camara-aprova-urgencia-para-projeto-que-equipara-aborto-de-gestacao-acima-de-22-semanas-a-homicidio/>

Enquete do PL 1904/2024. Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/enquetes/2434493/resultados>

The World’s Abortion Laws. Center for Reproductive Rights, 2024. Disponível em: <https://reproductiverights.org/maps/worlds-abortion-laws/>

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

Sobre os autores:

Bruno Lazzarotti Diniz Costa, Doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor e Pesquisador da Fundação João Pinheiro. Coordenador do Observatório das Desigualdades.

Anna Clara Ferreira Mattos, Graduanda em Administração Pública na Fundação João Pinheiro. Colaboradora do Observatório das Desigualdades.