Bruno Lazzarotti

Beatriz Acácio

Clarice Miranda

Alessandra Von Döllinger

Matheus Arcelo Silva

 

Todo o sentimento é pouco para falar de Chico.  Em 19 de junho, Chico Buarque completa 80 anos de idade. Como poucos artistas na nossa história, Chico combina uma presença essencial em campos tão diversos das artes com um compromisso social e político que atravessa, de maneira notavelmente coerente, toda sua carreira e é inseparável das lutas sociais do período recente.

Apesar de sua obra incluir a literatura, o teatro, musicais e cinema, é por meio da música que sua genialidade é mais reconhecida e foi ela que o tornou tão popular e admirado no Brasil e no mundo. E, mesmo na música, encontramos diversas faces e temas frequentando sua obra. Poderíamos começar falando do seu importante papel na resistência à ditadura militar no Brasil, por meio do enfrentamento à censura, como é apresentado na entrevista realizada por Raphael Vidigal Aroeira com Márcio Pinheiro, autor do livro “O Que Não Tem Censura nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar”.

Ainda na série de entrevistas apresentadas na reportagem acima, Hamilton de Holanda e Pedro Alexandre Sanches, nos mostram a genialidade de Chico em suas composições e sua capacidade como artista. Além disso, Chico escreveu peças de teatro, romances, além dos contos, que podem ser encontrados em “Anos de Chumbo”. Reforçando essas inúmeras facetas de Chico, na comemoração aos seus 50 anos, a Polygram Philips lançou uma coletânea que foi dividida em 5 CDs: O Político; O Trovador; O Amante; O Cronista; e O Malandro.

A única certeza que fica é que Chico é tudo isso e muito mais. Ao pensar sobre as desigualdades no Brasil, é impossível não falarmos da sua capacidade de abordar o cotidiano e de apreender o real nas suas mais diversas dimensões. Neste sentido, o Observatório das Desigualdades fez uma playlist em homenagem aos 80 anos do artista, que chamamos “Em busca do tempo da delicadeza”. Neste sentido, não poderíamos deixar de começar a playlist com a canção “Todo sentimento”, a qual não apresenta as temáticas que listamos a seguir, mas é uma marca da sensibilidade de Chico, que diante de questões tão complexas que tratamos, nos traz para essa busca do tempo da delicadeza. 

Além desta primeira música, selecionamos - com a arbitrariedade de nossos gostos e vivências, é preciso confessar - canções que expressam as principais formas pelas quais a vocação deste Observatório encontra inspiração nos temas de Chico: algumas tratam da denúncia das desigualdades e opressão; em outras, levanta a voz contra a tortura, a repressão e a censura na ditadura; mas sempre - sempre! -  insistindo na resistência e esperança, na certeza de que amanhã será outro dia e que, depois de nos perdermos tanto e por tantos descaminhos, nos encontraremos novamente no tempo da delicadeza que haveremos de construir.

Desta forma, dando sequência à playlist, a música que selecionamos foi “Apesar de Você”. Essa foi a música escolhida como uma das mais expressivas do artista por Márcio Pinheiro, na entrevista que citamos acima. Inicialmente, até mesmo para a surpresa de Chico, a música foi liberada pela censura, muito devido à genialidade e à forma como Chico escreveu a letra, mas depois de fazer muito sucesso, com mais de  100 mil cópias vendidas, a música foi censurada, o que fez com que Chico passasse a ser ainda mais observado e acompanhado pelos censores da ditadura.

 

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Outra canção digna de apreciação e dificilmente esquecida se tratando de Chico Buarque é “Cálice”, composta em parceria com Gilberto Gil e gravada posteriormente com Milton Nascimento, outros artistas muito censurados pelo regime ditatorial. Alvo de censura durante cinco anos, sua letra faz uso de símbolos religiosos na forma de metáforas para denunciar o cerceamento da liberdade de expressão. Os duplos sentidos construídos foram mecanismos brilhantes para ilustrar todo o cenário de violência. Analisando o título da canção, já é possível notar a similaridade sonora entre as palavras “cálice” e “cale-se”, remetendo à súplica pelo fim da repressão. Ainda, a figura do cálice, que no contexto bíblico é repleto do sangue de Jesus, no contexto ditatorial pode-se interpretar como cheio do sangue dos brasileiros torturados e dizimados.

 

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A obra “Deus Lhe Pague”, por sua vez, foi censurada em 1971. A expressão tipicamente brasileira “Deus Lhe Pague” é repetida em vários momentos da letra, sendo utilizada em um tom irônico ao agradecer pelo acesso a necessidades básicas da vivência humana, como comida e local para dormir, uma vez que os direitos humanos básicos estavam sendo colocados em cheque no período ditatorial. Esse viés correlaciona-se com a relevância do ufanismo à época, situação em que os ditadores utilizavam do patriotismo exacerbado para que os cidadãos se contentassem com aquilo que era proposto, ilustrado pelo uso de slogans como “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. Ainda, existe uma construção de tons de revolta na canção. Em certo ponto, o descontentamento torna-se mais explícito, o que pode ser observado no trecho “Deus lhe pague por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir”. Assim, é notável o cansaço de Chico em acobertar suas críticas, a angústia do grito de socorro preso na garganta.

 

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“Acorda amor. Eu tive um pesadelo agora. Sonhei que tinha gente lá fora” assim começa a canção “Acorda Amor”  que foi divulgada associada ao nome de Julinho da Adelaide, pseudônimo utilizado por Chico para que a música fosse liberada pelos sensores. O diálogo, que ocorreu entre o interlocutor e sua mulher, por mais que pareça fantasioso, foi uma realidade enfrentada por diversos artistas, políticos e ativistas durante a ditadura militar. Eles foram surpreendidos por carros do DOI-CODI na porta de suas casas pela manhã os convocando a prestar depoimento, ou em muitos casos eram presos. Buarque de Holanda, continua sua narrativa recomendando para sua companheira que não lhe espere, caso sua volta demorar “ Mas depois de um ano eu não vindo. Ponha a roupa de domingo. E pode me esquecer”. Tal trecho, simboliza de maneira subliminar que diversos cidadãos que após irem prestar depoimentos, ou cumprir as penas estipuladas pelos militares, acabavam tornando-se desaparecidos. Diante disso, Buarque de Hollanda mais uma vez soube usar a poesia como forma de protesto e abarcou de maneira divertida a mais dura face da ditadura.

 

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“Você não gosta de mim. Mas sua filha gosta”. Tal passagem poderia ser escutada em uma conversa entre sogro e genro, no qual o pai desaprova o companheiro escolhido pela sua filha. Entretanto, tal trecho integra a música “Jorge Maravilha” de Chico Buarque, canção essa que de acordo com intrigas e narrativas paralelas, se propõe a gozar o fato das filhas dos militares irem pedir autógrafos para Chico, após seu concerto. Nessa perspectiva, a música aborda um assunto menos pesado que as demais, mas não perde seu valor, pois através de uma melodia contagiante e de um jogo de palavras brilhante Buarque de Hollanda demonstra que reprimir e censurar as expressões artísticas da população não é eficaz para controlar o gosto da população.

 

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Além das canções analisadas nesse post, outras muitas são importantes para compreender os movimentos de resistência e de renascimento das lutas sociais de rua. Dentre elas, está “Linha de Montagem”, que trata do nascimento do movimento sindical dos metalúrgicos do ABC com os enfáticos dizeres - quase uma profecia -  o que quer que se visse politicamente no país, passaria por lá. Evidencia-se, ainda, a resistência das mulheres no âmbito das ocupações urbanas na letra de “A Violeira”, escrita conjuntamente a Tom Jobim. “Sonho Impossível”, por sua vez, é um grito contra a resignação em que a busca por tempos melhores é o que move o eu lírico frente aos inúmeros fardos impostos pelo regime ditatorial.

Em ritmo de conclusão, julgamos pertinente incluir alguns pareceres de censura contra a obra de Chico para demonstrar que o retrato sincero dos sentimentos e do cotidiano popular incomodaram - e muito - a ditadura vigente, que tentou silenciar suas manifestações artísticas.

 

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Sugestão de censura do filme “O & A”, de Joaquim R. Correia Freire e Chico Buarque. Fonte: Arquivo Nacional, Memórias Reveladas.

 

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Censura da música “Cordão” que fez com que Chico Buarque substituísse “nas grades do coração” para “as portas do meu coração”. Fonte: Arquivo Nacional

 

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Censura da música “Milagre Brasileiro”, inicialmente publicada sob o pseudônimo Julinho da Adelaide, que retrata as desigualdades do assim chamado Milagre Econômico. Fonte: Arquivo Nacional.

 

Assim, Chico Buarque completa 80 anos em vida, mas é eternizado em sua contribuição para a luta cotidiana contra a repressão, para além da Ditadura Militar, por meio da música. A identificação das pessoas com suas letras até os dias atuais traz à reflexão o quanto do período ditatorial ainda resta no cenário de ascensão atual da extrema-direita no país. Que suas letras possam inspirar e trazer à lembrança as marcas da história brasileira, de onde viemos, pelo que passamos e para onde vamos.

Citamos neste post apenas algumas das músicas que escolhemos para compor a playlist. Escute essas e outras músicas que selecionamos em comemoração aos 80 anos de Chico Buarque clicando aqui.

Referências e fontes

Memorial da Ditadura, ver mais: https://memoriasdaditadura.org.br/cultura/acorda-amor/

Censura às músicas de Chico Buarque, ver mais: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/diretorio-academico/a-censura-as-musicas-de-chico-buarque-na-ditadura-1964-1985/#:~:text=Os%20principais%20cantores%20censurados%20pela,pelo%20menos%2010%20can%C3%A7%C3%B5es%20censuradas

Aos 80 anos, Chico Buarque tem a obra revista e analisada, ver mais: https://esquinamusical.com.br/aos-80-anos-chico-buarque-tem-a-obra-revista-e-analisada-em-livros/

Marco na carreira de Chico Buarque, disco 'Construção' quase foi perdido por erro técnico, acesso em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-56409701

Censura, acesso em: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/centrais-de-conteudo/imagens-e-documentos-do-periodo-de-1964-1985/censura

 

Sobre as autoras e os autores:

Bruno Lazzarotti, Coordenador do Observatório das Desigualdades. Doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador da Fundação João Pinheiro (FJP).

Beatriz Acácio, Graduanda Administração Pública na Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, vinculada à Fundação João Pinheiro (EG-FJP) e atual estagiária no Observatório das Desigualdades.

Clarice Miranda, Graduanda em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro (EG – FJP) e estagiária do Observatório das Desigualdades. Acredita na transformação social através das políticas públicas.

Alessandra Von Döllinger, extensionista do Observatório das Desigualdades e graduanda em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro (EG-FJP). Espera que, cada vez mais, as pessoas possam superar as falsas narrativas que legitimam a violência e a desigualdade.

Matheus Arcelo Silva, Doutorando em Educação e mestre em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), possui graduação em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro (EG-FJP). Atua como membro do Observatório das Desigualdades.

*O Observatório das Desigualdades é um projeto de extensão. O conteúdo e as opiniões expressas não refletem necessariamente o posicionamento da Fundação João Pinheiro.

**Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.