Temístocles Murilo de Oliveira Júnior

 

Há 30 anos, no dia 23 de junho de 1994, era publicado o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal[1] e, até o momento de elaboração deste texto, poucas notícias foram encontradas sobre esta data e sua importância. Passadas três décadas, esta possível desatenção parece se relacionar com três questões marcam a trajetória da ética e da gestão da ética na administração pública federal brasileira.

A primeira questão está ligada ao relativo desinteresse em relação ao funcionamento das instituições de ética pública, a seus mecanismos e a sua relação com seus pares, com exceção aos momentos de escândalo de corrupção. A segunda se refere à concentração do debate sobre a ética pública no controle do conflito de interesses, resultante da agenda internacional e do apelo do combate à corrupção. Como desdobramento destas questões anteriores, acrescente-se a dinâmica de disputas e acomodações de preferências que moldam as instituições que, de uma forma ou outra, terminam ligadas ao enfrentamento da corrupção.

Aqui, apresento esta trajetória com foco nos contextos, atores e argumentos, isto com o intuito de trazer estas questões ao debate. Mais que isso, espero incentivar estudos e abordagens críticas sobre a ética pública e sua gestão no Brasil, para fortalecimento de uma literatura que vá além das pesquisas que se bastam como inventários de normas, reproduções de jurisprudências ou revisões de doutrina. Neste esforço, faço referência a diversos documentos que colhi no esforço de promover um debate que se pretenda qualificado.

  1. Dou início ao caminho recente da ética e sua gestão no Brasil, indicando que o Código “aniversariante” teve seu nascimento marcado no contexto da CPI do Orçamento, proposto a partir de uma Comissão Especial de Investigação (CEI), criada em dezembro de 1993, para examinar o envolvimento de agentes do Executivo[2] e apresentar propostas de melhoria normativa[3]. A partir de um grupo de trabalho formado no seio daquele colegiado para elaborar o texto-base do Código, esta CEI o propôs ao Presidente Itamar Franco por meio da Exposição de Motivos nº 001/94-CE, de 09/05/1994[4].
  2. Há quatro justificativas na exposição de motivos. De início, menciona a “corrupção generalizada”, estimulada pela “impunidade” e “ausência de valores éticos e morais”. Segundo, aponta a postura disseminada de “desrespeito” aos usuários dos serviços públicos. Terceiro, defende que o código não tem coercibilidade jurídica, não se confundindo com o regime disciplinar. Por fim, indica que as comissões de ética nos órgãos seriam elos entre usuários e o serviço público, orientando a ética para o tratamento das pessoas e a proteção do patrimônio moral e material.
  3. Entre 1994 e 1999, as comissões de ética ficaram sob o acompanhamento da Secretaria de Administração Federal (SAF), depois absorvida pelo MARE[5]. Assumida como tema da agenda gerencialista do governo FHC, a ética passou a constar dos trabalhos propositivos do Conselho de Reforma do Estado[6]. Há indicações de que neste Conselho ocorreram os primeiros esforços de formulação de um “Código de Conduta dos Titulares de Cargos na Alta Administração Federal” que incluísse a “quarentena”, um dos subtemas do conflito de interesses[7].
  4. Passados alguns meses, após a extinção do MARE, o membro do Conselho de Reforma do Estado que esteve à frente das propostas ligadas à ética se tornou o primeiro presidente da Comissão de Ética Pública (CEP). Criada em maio de 1999, a CEP foi incumbida da revisão das normas sobre ética, de propor a instituição do "Código de Conduta das Autoridades” do Poder Executivo Federal, bem como de supervisionar a implementação desse código e centralizar o contato com as comissões de éticas nos órgãos do Executivo, criadas pelo Código de Ética dos Servidores de 1994.
  5. A proposta do Código de Conduta da Alta Administração foi elaborada no âmbito da CEP, sob a justificativa de que a ética seria requisito da boa governança[8], e posta para consulta pública em agosto de 1999[9]. A ementa do texto proposto indica a centralidade do tema do conflito de interesses. As justificativas na nota que acompanha o texto apontam a influência da OCDE em estudo que apontava a crise generalizada de credibilidade dos governos e a necessidade do controle do conflito de interesses por conta do novo cenário de mudança estrutural no papel do Estado, agora como regulador da atividade econômica e da exploração de serviços públicos.
  6. Assento que as justificativas desde as primeiras propostas do Código da Alta Administração foram baseadas em argumentos que reduziam a razão da ética ao combate à corrupção, encapsulando-a como conjunto de controles do conflito de interesses e de seus subtemas (transparência no lobby, obrigatoriedade de consultas e autorizações para atividades privadas, declarações de bens e de interesses, quarentena, controle da agenda de compromissos e recebimento de presentes e hospitalidades). Na mesma época de construção do Código da Alta Administração, a OCDE vinha reforçando e promovendo seus padrões sobre ética pública com estudos e publicações que a conectavam ao controle de conflito de interesses[10]. Neste período, o governo brasileiro buscava adesão à Convenção da OCDE contra a corrupção, em processo concluído em novembro de 2000[11].
  7. O Código de Conduta da Alta Administração, aplicável a detentores de cargos de nível DAS 5 ou superior e centrado no controle do conflito de interesse, foi publicado em agosto de 2000. Sua formalização não se deu por decreto, mas por uma “exposição de motivos” assinada pelo Ministro Chefe da Casa Civil, situação sobre a qual não foi encontrada motivação. A CEP restou como órgão responsável por garantir a implementação e o escopo do Código ficou restrito ao Executivo Federal, assim como o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil. Até 2003, a CEP havia publicado oito resoluções[12], todas sobre o conflito de interesses e seus subtemas, com exceção de uma, relacionada ao seu próprio regimento. As atas da CEP[13] no período indicam que ela recebeu, além de consultas e pedidos de autorização ligados a conflito, denúncias sobre outras questões, como pronunciamentos e condutas supostamente antiéticas.
  8. Em 2004, um novo ator que surgiu no quadro institucional entre 2001 e 2003, impõe-se na trajetória da ética pública e em sua concentração no controle do conflito de interesses. Como órgão do Executivo Federal responsável pela representação do Brasil junto aos fóruns e convenções internacionais sobre o combate à corrupção, a Controladoria-Geral da União - CGU sugeriu na primeira reunião do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção – CTPCC, que funcionava sob sua liderança, que a criação de um anteprojeto de lei sobre conflito de interesses fosse gestada naquele colegiado. Como consta da ata daquela reunião[14], o representante da CEP "registrou que o combate à corrupção e a promoção da ética deixaram de ser interativas e ressaltou o retardo da promoção da ética [, sugerindo] que a [CEP] ajudasse no acompanhamento do cumprimento dos compromissos firmados pelo país".
  9. Entre 2005 e 2006, as atas da 2ª, 3ª e 5ª reuniões do CTPCC, uma consulta pública realizada sobre a proposta do anteprojeto de lei[15], o discurso de apresentação deste anteprojeto[16] e a exposição de motivos[17] que o enviou à Casa Civil indicaram grande protagonismo da CGU, apresentando como justificativa para sua aprovação a adesão do Brasil à Convenção da Nações Unidas contra a Corrupção. No texto proposto, constam diversas competências atribuídas à CGU, sustentadas em argumentos de que ela exerceria o controle do conflito de interesses dos ocupantes de cargos inferiores ao nível DAS 5, não alcançados pelo Código da Alta Administração e fora do escrutínio da CEP. É importante registrar que há notícias[18] e avaliações de instrumentos anticorrupção[19] no Brasil que indicam que a CEP, à época, enfrentava questões de demora na indicação de membros, falta de suporte e insuficiência institucional que podem indicar uma menor capacidade na condução da agenda de conflito.
  10. No início de 2007, sem contar aparentemente com a participação da CGU, a CEP elaborou a proposta de texto do decreto de instituição do Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal[20], encaminhando-a à Casa Civil. A exposição de motivos centra-se no argumento da necessidade de aprimoramento do controle do conflito de interesses como estratégia de enfrentamento à corrupção, não fazendo quaisquer menções à CGU. O texto aprovado faz somente uma menção à CGU, em dispositivo que trata do encaminhamento dos casos em que, após apuração de transgressões éticas, haja indicações de possíveis transgressões disciplinares. No ano seguinte, a CEP edita a Resolução nº 8 que regulamenta o processo de apuração de transgressões éticas.
  11. Importa registrar que a publicação do decreto de criação do Sistema de Gestão da Ética combinado com o Código da Alta Administração resultou na existência de dois sistemas no Poder Executivo Federal com competências apuratórias e sancionatórias que alcançam todos os ocupantes de cargos efetivos e em comissão, até aqueles de natureza especial (secretários-executivos). De um lado, está o Sistema de Gestão da Ética, liderado pela CEP e composto pelas comissões de ética nos órgãos que podem apurar e aplicar sanções no caso de transgressões éticas. De outro, o Sistema de Correição do Poder Executivo Federal – Siscor, liderado pela CGU e composto pelas corregedorias dos órgãos, que podem apurar e aplicar penas no caso de transgressões disciplinares. Aí reside um problema central, pois há condutas que podem configurar ao mesmo tempo falta ética e disciplinar, não sendo clara a separação das competências ou a concomitância das atuações.
  12. Entre 2009 e 2013, não são observadas novidades significativas entre as normas relacionadas à gestão da ética e a tramitação do projeto de lei do conflito de interesses entre as casas do Congresso[21] segue em ritmo mais lento. Em abril de 2013, o projeto vai ao plenário do Senado com parecer do relator pela aprovação, mas com indicação pela exclusão das competências da CGU em diversos dispositivos. A defesa é de que a atuação da CGU causaria confusão e sobreposição de competências em desfavor da CEP, dificultando o funcionamento do Sistema de Gestão da Ética e os esforços de educação, prevenção e controle das comissões de ética dos órgãos[22]. Mesmo com o parecer, o texto foi aprovado e sancionado sem maiores mudanças.
  13. A partir da Lei de Conflito de Interesses, de maio de 2013, há uma bifurcação na trajetória da gestão da ética pública, com momentos de afastamento, sobreposição e aproximação entre CEP e CGU. Especificamente em relação à trajetória da CGU, ainda em 2013, esta Controladoria editou, em conjunto com o Ministério do Planejamento, a regulamentação da consulta sobre a existência de conflito de interesses e do pedido de autorização para o exercício de atividade privada para ocupantes de cargo até DAS 4[23]. Após, lançou o Sistema Eletrônico de Prevenção de Conflito de Interesses – SeCI para o recebimento, processamento e oferecimento da resposta a estas consultas e pedidos.
  14. A partir de 2016, a CGU passou a realizar forte investimento na agenda da integridade pública, iniciado pela publicação de portarias em abril de 2016, abril de 2018 e janeiro de 2019, e depois pela edição de decretos em julho de 2021 e maio de 2023[24]. Por esta agenda, a ética pública e o conflito de interesses representariam medidas ou funções de integridade diferentes, isto, explicitamente, em duas portarias. Além disso, como “funções de integridade” passariam a ser orientadas, organizadas e monitoradas a partir de programas elaborados e implementados por unidades (de gestão ou setoriais) de integridade em cada órgão, ligadas à CGU, conferindo certo sentido de “subordinação”. Os registros sobre a formulação dos atos normativos de integridade[25] indicam que a CEP somente teria sido formalmente provocada a prestar contribuições sobre o decreto publicado em 2021, que institui o Sistema de Integridade do Poder Executivo Federal - SIPEF. Em relação às portarias de 2016, 2018 e 2019 e ao decreto de 2023, não foram encontrados registros que apontem a participação ou pelo menos a provocação direta da CEP em sua formulação.
  15. Importante registrar quanto à relação entre o SIPEF e o Sistema de Gestão da Ética, que a OCDE, em avaliação realizada em 2021, apontou que a coexistência dos dois resultaria em “complexidade, opacidade e sobreposição de responsabilidades, especialmente na formação e orientação sobre valores, dilemas éticos e situações de conflito de interesses”. Como segundo ponto, assentou que a possiblidade das comissões de ética nos órgãos apurarem violações à integridade e aplicarem sanções representaria uma mistura de funções preventivas e sancionatórias que poderiam “criar tensões em seu papel de fornecer orientação e sobrepor-se ao regime disciplinar federal”, resultando em possíveis ambiguidades já mencionadas entre o Sistema de Gestão da Ética e o Siscor da CGU.
  16. Em dezembro de 2020, a CGU lançou o Plano Anticorrupção, elaborado pelo Comitê Interministerial de Combate à Corrupção (CICC), que era por ela liderado e que não contava com a representação da CEP. Este plano separava a “Ética Pública”, ligada à prevenção, apuração e monitoramento de irregularidades éticas em geral e ao nepotismo, do “Conflito de Interesses”, ligado à transparência de agendas, presentes, hospitalidades, quarentena, consultas e autorizações de atividades privadas. O plano trazia somente indicações da atuação conjunta da CGU e da CEP nas ações ligadas a estes temas e apenas uma menção à CEP na atuação com a CGU para atualização de atos normativos, desenvolvimento de sistemas e monitoramento no caso da “Ética Pública”.
  17. Também em dezembro de 2020 e dezembro de 2021, foram publicados dois decretos[26] cuja formulação foi liderada pela CGU, acompanhados do lançamento de dois novos sistemas, todos relacionados a conflito de interesses. O primeiro decreto trata da declaração de bens e situações que podem configurar conflito de interesses e o sistema desenvolvido para sua implementação é o e-Patri. O segundo decreto trata do controle e transparência da agenda de compromissos de autoridades e do tratamento de presentes e hospitalidades e o sistema correspondente é o e-Agendas.
  18. Em relação à CEP, entre 2014 e 2018, foram editadas três resoluções, uma nota de orientação e uma orientação normativa com a CGU, todas sobre conflito de interesses e seus subtemas. Em paralelo à CGU, a CEP não conta, até o momento, com um sistema como o Seci. Assim, as consultas e pedidos de autorização de atividades privadas de ocupantes de cargo DAS 5 ou superior são recebidos pelo protocolo, como quaisquer outros pleitos.
  19. Ainda sobre a CEP, em 2022, por conta dos decretos sobre bens e situações que podem configurar conflito de interesses e de transparência da agenda de compromissos de autoridades e do tratamento de presentes e hospitalidades, a CEP editou três novas resoluções que alteraram ou revogaram resoluções anteriores. Finalmente, em 2023, a CEP publicou outras três resoluções mais direcionadas ao Sistema de Gestão da Ética, no caso, alterando seu regimento interno, definindo a divulgação das informações sobre sanções éticas e formalizando o compartilhamento de informações entre comissões de ética e órgãos de controle.

Findo o esforço de apresentar informações sobre o delineamento da trajetória da gestão da ética pública no Brasil, faz-se essencial indicar que o fato de esta ter sido marcada por escândalos, pressões internacionais e a dinâmica de disputas e acomodações não implica que o país tenha adotado mecanismos inadequados ou que estes não apresentem resultados positivos ou relevantes. Como uma agenda em construção e, até certo ponto, em disputa, seria de ser esperar que existam lacunas, sobreposições e controvérsias.

Entretanto, há reflexões a serem postas a partir das questões apresentadas, que não só marcam a trajetória da gestão da ética pública no Brasil, mas cujo debate crítico a partir do olhar sobre estes últimos 30 anos se faz essencial para a construção de uma nova agenda.

Sobre o relativo desinteresse dispensado às instituições de promoção e gestão da ética, com exceção aos momentos de escândalos de corrupção, aqui, esforço-me na reflexão em duas frentes. Primeiro, resgatando proposta de Sandro Bergue[27], indico que urge maior aprofundamento e qualificação do debate sobre a ética e sua importância para a administração pública. As imprecisões conceituais e a força do modelo mental jurídico-normativo levam o pensamento sobre a ética e sua gestão a serem moldadas como estruturas controladoras, persecutórias e sancionatórias e não permitem a compreensão da distância entre ética e moral. Esta força impede a percepção de qual seja o papel das comissões de ética e, logo, da CEP e de todo o Sistema de Gestão da Ética, inclusive em contraposição ao Sistema de Correição ou ao Sistema de Integridade. O resultado é o enfraquecimento das ações e mecanismos de ética em relação ao lugar onde residiria sua efetividade, que sejam na formação e educação relacionadas à administração pública. A segunda frente se relaciona à primeira e versa sobre o peso da cultura do escândalo, havendo diferentes estudos que abordam o fenômeno no Brasil e em outros países[28]. O problema é que esta situação provoca diferentes efeitos em relação à ética. Um, já abordado, é o reforço do moralismo, acentuando a confusão entre ética e moral, reduzindo a representação da ética à “não corrupção”. O segundo, é que imprime à gestão da ética e aos seus mecanismos o papel de mecanismos anticorrupção, acentuando a demanda por seu funcionamento meramente controlador e persecutório.

Sobre a concentração do debate sobre a ética pública no controle do conflito de interesses, esta questão está intrinsecamente relacionada à anterior. Entre as diferentes agendas que circundam o debate da ética com maior e menor influência, a ascensão do conflito de interesses não ocorre no vazio histórico e discursivo. As justificativas relacionadas às mudanças estruturais do papel do Estado desde os anos 1990, aos compromissos internacionais e à necessidade de resposta aos clamores pelo combate à corrupção podem apoiar a explicação para o domínio da pauta do conflito de interesses, mas nem por isso resolvem as lacunas deixadas sobre outras questões ligadas ao sopesamento de valores éticos na decisão e na ação pública que, superficialmente, chegaram a constar da exposição de motivos do próprio Código de Ética do Servidor do Executivo Federal. Com isso, a centralidade do conflito de interesses pode estar deixando “de fora” questões éticas relevantes ligadas à entrega de políticas públicas, à definição de populações beneficiárias ou à orientação das ações públicas para a justiça social e a redução de desigualdades, não abarcando desafios contemporâneos como a aceitação do uso de dados falsos ou insuficientes para tomada de decisão, as estratégias de desinformação ou a adoção de regras discriminatórias no atendimento em serviços de saúde ou de educação. Não negando a importância do controle do conflito de interesses, importa não limitar a ética pública e a gestão da ética ao mecanicismo superficial público X privado.

Em relação à dinâmica de disputas e acomodações que moldam as instituições forçadamente ligadas ao enfrentamento da corrupção, sobre esta questão também já há certa literatura[29]. Políticas públicas e instituições são, em regras, objetos de disputa. Enquanto estruturas, regras e processos que moldam comportamentos, definem beneficiários ou restringem direitos, representam fontes de poder e influência com potencial de geração de retornos a seus protagonistas. No caso de políticas ligadas ao combate à corrupção, fenômeno que goza de largo apelo, o potencial da produção de resultados positivos de poder e reputação tende a ser ampliado. Em contextos em que o debate sobre a ética pública é concentrado no conflito de interesses e justificado pelo combate à corrupção, há maiores chances da ocorrência de disputas e acomodações de poder. O risco é que esta dinâmica limite a capacidade crítica das instituições, dos atores políticos e da própria sociedade à medida em que o apelo do conflito de interesses e do combate à corrupção é retroalimentado pela própria dinâmica. Mais uma vez, sem negar a importância do controle do conflito, alerta-se que a luta pelos ganhos de poder e reputação não deve se intensificar ao ponto de naturalizar o esvaziamento do debate sobre a ética pública e sua gestão. Ao invés de negar que a ética pública “puxada” pelo conflito de interesses seja objeto de disputa, o melhor então é que se admita este fato.

Passadas estas três décadas, creio que seja possível olharmos em perspectiva sobre os caminhos e descaminhos da ética pública e de sua gestão no Brasil e, então refletirmos sobre as questões apresentadas e tantas outras tantas que não contemplei aqui, mas que emergem da trajetória apresentada, como a limitação do Sistema de Gestão da Ética ao Poder Executivo Federal ou as possíveis fragilidades institucionais da CEP e das comissões de ética nos órgãos. Os desafios são muitos e seu enfrentamento só é possível à medida em que reconhecermos que a ética pública é um tema vivo e que os instrumentos de sua gestão devem fazer parte de discussões e esforços de aprimoramento que sejam críticos, contínuos e mais participativos. Com isso, para além depreciar avanços, busquei com este texto incitar um debate que seja mais qualificado que viabilize a percepção de novos horizontes de possibilidades para a ética na administração pública brasileira.

Notas

[1] Este código foi aprovado pelo Decreto nº 1.171, de 22 de junho de 1994.

[2] Reportagem na página 5 da edição de 08/12/1993 do Jornal do Brasil, disponível em https://memoria.bn.gov.br/pdf/030015/per030015_1993_00244.pdf.

[3] Esta Comissão foi criada pelo Decreto nº 1.001, de 6 de dezembro de 1993.

[4] Informações obtidas por meio do pedido de informação 00137.019424-2023-05.

[5] Portaria SAF nº 3.468, de 23de novembro de 1994, e Medida Provisória nº 813, de 1 de janeiro de 1995.

[6] Vide MARE (1998). O Conselho de Reforma do Estado/Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado.

[7] Vide notícia em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc20069812.htm.

[8] Vide CEP (2002). Encontros entre meios e fins: a experiência da Comissão de Ética Pública. Brasília: CEP.

[9] Vide conteúdo disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consulta_publica/consulta1.htm.

[10] Vide OECD (1999). Public Sector Corruption: An International Survey of Prevention Measures, available at www.oecd.org/gov/ethics; OECD (2000). Trust in Government: Ethics Measures in OECD Countries, available at www.oecd.org/gov/ethics; OECD (2000). Building Public Trust: Ethics Measures in OECD Countries, PUMA Policy Brief (September 2000), available at www.oecd.org/gov/ethics.

[11] Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000.

[12] As resoluções da CEP estão disponíveis em https://www.gov.br/planalto/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/governanca/etica-publica/legislacao/resolucoes-da-cep

[13] As atas da CEP, de 2000 a fevereiro de 2019, estão disponíveis em https://www.gov.br/planalto/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/governanca/etica-publica/reunioes-de-colegiado/copy_of_pauta-de-reunioes/atas-2000-a-2019/2000

[14] As atas do CTPCC, de 2004 a 2022, estão disponíveis em https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/transparencia-publica/conselho-da-transparencia/documentos-de-reunioes/arquivo-ctpcc

[15] Vide conteúdo publicado em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consulta_publica/conflito-interesse.htm.

[16] Vide conteúdo publicado em https://www.gov.br/cgu/pt-br/composicao/ministro/discursos/discursos-jorge-hage/o-ministro

[17] Vide conteúdo publicado em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/projetos/EXPMOTIV/CGU/2006/5.htm

[18] Vide conteúdo em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/333262/complemento_1.htm?sequence=2&isAllowed=y

[19] Vide a seção 3 do Relatório da Primeira Etapa do MESICIC, disponível em https://www.oas.org/juridico/portuguese/mec_rel_bra.doc

[20] Decreto nº 6.029, de 1º de fevereiro de 2007.

[21] Na Câmara, o processo ganhou o número PL 7528/2006. No Senado, foi o PLC 12/2012.

[22] Vide o conteúdo disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3817640&ts=1630432770381&disposition=inline

[23] Portaria MP/CGU nº 333, de 19 de setembro de 2013.

[24] Estes normativos são as Portarias nº 784, de 28 de abril de 2016, 1.089, de 25 de abril de 2018, 57, de 4 de janeiro de 2019, e os Decretos nº 10.756, de 27 de julho de 2021, e 11.529, de 16 de maio de 2023.

[25] Informações obtidas por meio dos pedidos de informação 00106.002086/2024-11, 00106.018542-2023-55, 00106.018543-2023-08, 00106.018544-2023-44 e 00106.018545-2023-99.

[26] Decreto nº 10.571, de 9 de dezembro de 2020, e Decreto nº 10.889, de 9 de dezembro de 2021.

[27] Bergue (2022). Ética, Códigos de Conduta e Integridade na Administração Pública Brasileira. Administração Pública e Gestão Social, 14 (4). DOI: 10.21118/apgs.v14i4.13459

[28] Vide, por exemplo, de Sousa, L., & Coroado, S. (2023). Political Corruption in Portugal. In J. M. Fernandes, P. C. Magalhães, & A. C. Pinto (Eds.), The Oxford Handbook of Portuguese Politics (pp. 589-603). Oxford University Press.; Oliveira Júnior, T. M. (2019). Cultura do escândalo e a ortodontia da accountability em democracias recentes: estudo sobre reformas anticorrupção no Brasil na era Lava Jato. Revista da CGU, 11(18). https://doi.org/10.36428/revistadacgu.v11i18

[29] Vide, por exemplo, Da Ros, L., & Taylor, M. (2022). Brazilian Politics on Trial: Corruption and Reform Under Democracy. Lynne Rienner Publishers; e Oliveira Júnior, T. M., & Fonseca, C. M. (2024). Political dynamics in policymaking of freedom of information in Brazil. Brazilian Journal of Public Administration, 58(1). https://doi.org/10.1590/0034-761220230069x

 

Sobre o autor:

Temístocles Murilo de Oliveira Júnior é pesquisador PosDoc em Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP/ULisboa) e pesquisador do Laboratório de Governança, Gestão e Políticas Públicas em Defesa Nacional (Lab GGPP)

* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Blog Gestão, Política & Sociedade.