Luciana Papi

Alexandre Gomide

Rafael Viana

 

Introdução

Desfazer construções simbólicas não é simples. Como representações que refletem os imaginários sociais, essas construções contribuem para a aceitação das coisas e para sua perpetuação. Mazzucato (2014), ao retomar os argumentos de Polanyi, demonstrou como a ideia do livre mercado se consolidou no Ocidente como o mecanismo mais eficiente para dinamizar, tornar competitiva e inovadora a economia, alocando recursos de maneira eficaz. Em contrapartida, o Estado é retratado como uma força paralisante, frequentemente caracterizado como pesado, burocrático e ineficiente. Esses esquemas possuem influência tangível na realidade, moldando instituições e modelos de crescimento.

No caso brasileiro, Jessé de Souza, no livro Elite do atraso (2019), chamou a atenção para a mesma problemática: como os esquemas interpretativos sobre o Brasil interferiram em nossa autoimagem, na crítica ao Estado e na apologia ao mercado, tendo repercussões reais importantes. Uma delas foi a adoção do modelo de Estado neoliberal com seu correlato administrativo, a New Public Management (NPM), nos três níveis de governo de forma “praticamente” hegemônica desde os anos 1990.

Este artigo busca chamar a atenção para as limitações da NPM na construção de um Estado promotor do desenvolvimento econômico, social e ambiental, bem como para suas capacidades de prevenir e mitigar crises. Além disso, analisa como o neoweberianismo pode se constituir em um modelo inspirador para a construção de uma reforma do Estado que seja revitalizadora dos valores públicos, inovadora e dinamizadora de um novo projeto de desenvolvimento.

Origem e Impacto da Nova Gestão Pública

Originada nos países anglo-saxões durante a crise fiscal dos anos 1970, a Nova Gestão Pública parte da premissa de que o "tamanho" dos Estados planejadores e promotores do desenvolvimento, estabelecidos no pós-Segunda Guerra, seria responsável pela crise, necessitando, portanto, de reformas. Tal premissa abriu espaço para um liberalismo renovado, fortemente sustentado pela teoria econômica neoclássica (Carneiro; Menicucci, 2011), que se difundiu mundialmente. Do ponto de vista discursivo, iniciou-se um ataque ao Estado, enquanto práticas governamentais orientadas pela lógica de mercado ganharam prestígio. Dessa forma, fortaleceram-se as perspectivas de enxugamento do Estado e termos como "fazer mais com menos", "competição" e “flexibilidade” tornaram-se comuns, levando à incorporação de mecanismos e instrumentos como a privatização, terceirização, descentralização e transferência de responsabilidades para o terceiro setor, em serviços públicos essenciais. Isso resultou em consequências significativas, como a redução das burocracias públicas qualificadas e o desmonte de estruturas administrativas centrais para planejar e implementar políticas públicas. Frente às crises vivenciadas no ocidente a partir dos anos 2000, revelou-se a incapacidade da NPM de lidar com problemas complexos e desafiadores que exigem coordenação e capacidades estatais para articular soluções com diversos atores relevantes. Questões como segurança pública, saúde, proteção social e prevenção de desastres demandam abordagens integradas que a NPM não consegue proporcionar. Ademais, até mesmo os instrumentos prestigiados, como a "gestão por resultados", fracassaram. Conforme Peci (2008), a ênfase em metas e indicadores de desempenho levou à priorização de tarefas mais fáceis de medir, em detrimento de ações mais importantes, porém menos quantificáveis. Sua aplicação frequentemente resultou em uma sobrecarga administrativa, sem necessariamente melhorar a qualidade dos serviços públicos.

 O neoweberianismo como uma alternativa

Diante disso, em 2023, com a retomada de um governo progressista, o diagnóstico do desmonte do Estado e o projeto de revitalizá-lo, o neoweberianismo (NWS) começa a se notabilizar. Surgido na Europa continental em resposta a crises como o crash bancário global (2008), o desastre de Fukushima (2011) e a pandemia de covid-19 (2020-2022), o NWS sustenta que os modelos de administração baseados apenas em mecanismos de mercado ou redes não foram suficientes para prevenir e conter tais crises. Assim, o NWS advoga pelo retorno do Estado como ator legítimo e necessário para coordenar a administração pública em torno de objetivos coletivos. Contudo, isso não significa um retorno ao passado. Trata-se de aproveitar o positivo dos Estados ativos, como a valorização das capacidades burocráticas e a importância dos centros de governo e das hierarquias, associando esses aspectos às contribuições dos mecanismos de mercado e redes, como uma gestão mais aberta à sociedade, menos apegada a processos e mais participativa, transparente e voltada ao desempenho. Definido como um modelo híbrido, o NWS resgata princípios weberianos, como a reafirmação do papel do Estado e de sua legitimidade para a coordenação de mercados e redes no processo de governança; a reafirmação do império da lei como guia da administração; e um serviço público com ethos distintivo, incorporando e ressignificando elementos modernizadores da gestão pública presentes nos modelos da NPM e New Public Governance.

Em síntese, o NWS pode ser entendido como uma tentativa de preservação e fortalecimento do ethos do serviço público, complementada pela introdução de elementos modernizantes e pelo investimento no diálogo em rede com entes do mercado e da sociedade. Trata-se de um modelo que busca fortalecer a transparência e a democratização da gestão da ação pública, trazendo atores extra-estatais para a coprodução das políticas públicas, tendo o Estado como um ente privilegiado e coordenador dos diferentes agentes da rede, a partir de uma visão de médio e longo prazos. Defendemos que este modelo pode inspirar um novo processo de transformação da Administração Pública no Brasil, dadas as demandas urgentes por revitalização do Estado, de suas capacidades estatais e dos valores públicos, para promover o desenvolvimento econômico, social e ambiental, e, sobretudo, agir diante de crises que se tornam cada vez mais frequentes.

Conclusão

A NPM já evidenciou seus limites. É imperativo disputar o imaginário coletivo acerca dos paradigmas de administração pública no Brasil e construir uma alternativa reformista que fortaleça o setor público. Propõe-se aqui um modelo que coloque no centro de suas atenções a reafirmação dos valores democráticos, tanto como doutrina quanto como procedimento; que invista na modernização das estruturas estatais, evitando uma simples imitação dos mecanismos de mercado e do setor privado; que dispute o conceito de entregas, agilidade e transparência sem se confundir com o gerencialismo e a teoria econômica que lhe dá sustentação: a public choice.

Qualquer paradigma de gestão pública deve desejar a eficiência e eficácia na prestação de serviços. Contudo, defendemos que é preciso desapegar estritamente a resultados mensuráveis e de curto prazo, como faz a NPM e valorizar mais o impacto das políticas públicas na transformação da vida das pessoas.

É crucial articular-se com atores fundamentais, como mercados e redes, sem perder de vista o papel de coordenação e garantia do bem-estar coletivo. Além disso, deve-se reforçar a centralidade da participação social na tomada de decisões, implementação e avaliação de políticas.

Em suma, é necessário disputarmos ideacionalmente - e em diálogo com os diferentes setores da sociedade - o modelo de administração pública necessário ao Brasil para a superação dos diferentes desafios colocados acima. O neoweberianismo pode ser um modelo inspirador para a construção de uma reforma progressista e democrática com vistas à promoção de um Estado Democrático de Direito responsivo e inclusivo.

*As opiniões são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem posições institucionais das instituições às quais são filiados. 

** Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Blog Gestão, Política & Sociedade.

 

Sobre os autores:

Luciana Papi, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e pesquisadora do INCT Quali-gov

Alexandre Gomide, Diretor de Altos Estudos da Enap e pesquisador do INCT Quali-gov

Rafael Viana, Coordenador-Geral de Pesquisa da Enap