Jackson De Toni

 

A precarização do mercado de trabalho se reflete no aumento do número de trabalhadores informais, chamados eufemisticamente “empreendedores”. De acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Trabalhadores autônomos: quem são e o que pensam | Blog do IBRE (fgv.br),  sete anos após a reforma trabalhista  de 2017, quase 70% dos trabalhadores autônomos – os empreendedores -  desejam voltar a ter carteira assinada, ser formalizados, com direito a benefícios sociais e direitos  como  o 13º salário, as férias remuneradas, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a assistência médica, o vale-transporte, o seguro-desemprego e as licenças maternidade e paternidade. O empreendedorismo tão decantado pela “narrativa da prosperidade” não é uma virtude do capitalismo dourado e virtuoso, é mais uma condição passageira indesejável e perversa.

Segundo os critérios da pesquisa, em março de 2024, o Brasil contava com 25,4 milhões de trabalhadores autônomos, enquanto a população ocupada totalizava cem milhões. O desejo pela formalização é mais acentuado entre os trabalhadores de menor renda: 75,6% dos autônomos que recebem até um salário-mínimo (R$ 1.412) manifestam o desejo de ter um emprego com carteira assinada. Entre aqueles com renda de um a três salários-mínimos, esse percentual é de 70,8%. A massa de empreendedores – pobres e precarizados – não combina com a imagem de jovens saltitantes recém-formados startupeiros gerenciando sprints em  hackathons na gig economy. No mundo real o glamour é cilada.

A pesquisa, que consultou 5.321 pessoas, revelou que a maioria dos autônomos tem baixos rendimentos, 44% recebem até um salário-mínimo. A maioria é composta por homens e pessoas negras, com 38% deles na faixa etária entre 45 e 65 anos, 55% que se identificam como pretos ou pardos. Além disso, a pesquisa destacou a variação de até 20% nos rendimentos, de um mês para outro, para boa parte deles.

O aumento da precarização do mercado de trabalho, que alguns analistas identificam como “crescimento do empreendedorismo”, é decorrência direta da reforma da CLT de 2017. A reforma aprovada em julho de 2017, promoveu alterações em mais de 100 dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O projeto foi sancionado em 13 de julho de 2017 por Michel Temer, sob a narrativa enganosa que a nova legislação seria capaz de gerar empregos e aumentar a competitividade do país. A nova legislação, entre outras medidas, fixou a prevalência de acordos negociados entre empregadores e empregados, conferindo força de lei aos acordos coletivos firmados entre as partes.

Na base do empreendedorismo, milhares de motoristas de aplicativo, manicures, pedreiros, eletricistas e donos de pequenos negócios tentam sobreviver sem nenhuma proteção social. A “uberização do trabalho”, veio para ficar, conforme mostra o gráfico a seguir.

Evolução da população ocupada entre 2022 e 2024

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Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE)

Entre os trabalhadores por conta própria, 75% não possuem CNPJ, destes, 44% possuem baixo grau de escolaridade. A “uberização” do trabalho reproduz com impactos mais perversos, as desigualdades estruturais do mercado formal. Segundo o SEBRAE, 40% das empresas fecham suas portas até o quinto ano. Entre os principais motivos, a falta de planejamento, o desconhecimento do mercado e os problemas de gestão.

Assim, a narrativa do empreendedorismo é refém de uma ambiguidade intencional. De um lado, como virtude intrínseca, dialoga com os desejos de autonomia, liberdade e autogerenciamento de parcela crescente da juventude, que não vê perspectivas no mercado de trabalho convencional, alienante e opressor. Do outro, a narrativa mascara uma lógica de exploração inovadora das empresas-plataforma que culpabiliza o cidadão pelo desemprego, pela incapacidade de autoempregar-se, gerenciando-se a si mesmo.

Cabe ao Estado desenvolver políticas públicas que promovam o surgimento de empresas e a geração de empregos de qualidade, protegidos por padrões civilizados de qualidade mínima de vida e bem-estar. Garantir o mínimo de proteção social à legião de “uberizados” é um imperativo civilizatório. Como os alemães fizeram no mittelstand[1], ainda temos que construir políticas públicas perenes, consistentes e efetivas para nossos empreendedores, sobretudo para os segmentos mais frágeis, que são a maioria.

Nota

[1] Termo usado na Alemanha e Áustria para designar um vasto tecido social majoritário de pequenas e médias empresas, geralmente familiares, altamente produtivas e competitivas.

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

Sobre o autor:

Jackson De Toni, Doutor em Ciências Políticas pela UnB, Professor da ENAP.