Mariana Mazzini Marcondes

Ana Paula Antunes Martins

Fernanda Natasha Bravo Cruz

 

Nas últimas semanas, ganhou as redes e as ruas no Brasil o debate público sobre o que ficou conhecido como o PL antiaborto por estupro (ou apenas PL do estupro). O projeto de lei n. 1904/2024, de autoria de Sóstenes Cavalcante (Partido Liberal/RJ), prevê a equiparação com o crime de homicídio simples “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas”, mesmo nos casos em que o aborto é legalizado no Brasil (estupro, risco de vida da mãe e feto anecéfalo).

Uma das razões para tamanha repercussão aponta para os dados de violência sexual no Brasil. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, cerca de 90% das vítimas de estupro eram mulheres; enquanto 61,4% eram crianças de zero a 13 anos de idade (cerca de seis em cada 10 vítimas são, portanto, vulneráveis). E qual é a relação desses dados com o PL do Estupro? Se uma mulher adulta sofre uma violência sexual é mais usual que ela entenda que ocorreu uma violência sexual e uma gestação, o que facilita que ela busque ajuda e recorra aos serviços de aborto legal com agilidade, permitindo que o procedimento ocorra em até 22 semanas de gestação. O mesmo não ocorre com uma menina, que pode não compreender a ocorrência do estupro ou a gestação, além de poder ser vítima de familiar ou conhecido, dificultando que ela consiga reportar a situação e buscar o serviço médico de forma célere. Portanto, a corrida contra o tempo no caso do aborto das meninas é mais cruel, e a fronteira de 22 semanas entre o que pode ser aborto legal e o que pode ser homicídio poderia penalizar principalmente as meninas.

O PL do estupro teve ampla rejeição da sociedade à proposta, expressa em manifestações por todo o país, em enquete organizada pela Câmara dos Deputados/as (88% de respondentes manifestam total discordância), pesquisas de opinião (Datafolha indicou que 66% da população, ou seja, duas em cada três pessoas entrevistadas são contra o PL). Por isso, houve um recuo da parte da Câmara dos Deputados, expresso no anúncio do presidente Arthur Lira de que será criada uma comissão representativa, com participação de diferentes partidos, para a discussão do PL. A questão está longe de ser superada, contudo. O próprio Sóstenes Cavalcante já afirmou que, se o PL que propõe é mais brando do que o Estatuto do Nascituro, pode ser trazido de volta à pauta por ele. Além disso, o apoio ao PL não encontrou eco apenas na bancada evangélica, mas também a Confederação Nacional dos Bispos (CNBB) manifestou-se favoravelmente a ele. Dessa forma, para além de discutir sobre o caso em si, interessa-nos entendê-lo em um contexto político e de políticas públicas mais amplo, para refletir sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e sua interface com o Campo de Públicas.

Podemos iniciar pela discussão do contexto político, sem o qual não é possível compreender o processo de políticas públicas. Para compreendermos a conjuntura política em que nos encontramos, ajuda mergulharmos no debate sobre gênero e fundamentalismos, sendo um excelente guia o recém-lançado livro de Judith Butler “Quem tem medo do gênero?”. O ponto de partida do livro é a experiência da autora ao visitar o Brasil, em 2017, para uma palestra no SESC de São Paulo, quando um grupo de manifestantes de extrema-direita mobilizou-se contra ela, inclusive queimando sua imagem representada como bruxa. Nesse seu livro mais recente, Butler reflete como gênero tornou-se um componente central dos discursos políticos conservadores e fundamentalistas, atuando de forma fantasmagórica, por meio do espectro da ideologia de gênero, produzindo pânico moral e sendo mobilizado por grupos políticos e governos autoritários de extrema-direita. 

No Brasil, a disputa política (que é também discursiva e ideológica) em torno do gênero é bastante curiosa. Parte expressiva do campo progressista não atribui a mesma prioridade às pautas feministas, dos movimentos LGBTQIA+ e antirracistas, dentre outras, que a extrema-direita atribui. As desigualdades ainda são compreendidas a partir de um olhar economicista, que estreita muito os horizontes e só permite enxergar os conflitos distributivos de renda e riquezas a partir da perspectiva de classe social, transformando o debate sobre gênero, raça e suas interseccionalidades em “identitarismo” ou em “pauta de costumes”. Recorrendo a Marx, em sua discussão com o cidadão Weston, poderíamos dizer que essa abordagem é tão limitada que poderia caber em uma casca de noz.

Primeiro, porque ela parte de uma compreensão limitada sobre identidade; essa é sempre construída a partir da ideia da alteridade, ou seja, do “outro”, sendo o “outro” os sujeitos políticos que sofrem os efeitos negativos das relações de poder e de dominação. A identidade é “ ser mulher”, “ser pessoa negra”, “ser LGBTI+”, “ser indígena”. Não são compreendidas como identidades “ser pessoa branca”, “ser homem”, “ser cisheterossexual”, ou seja, as expressões identitárias dos grupos privilegiados por essas relações de poder. Esse é um recurso discursivo clássico das ideologias dominantes, que é o de se confundir com o senso comum, com o universal.

Em segundo lugar, a leitura de que os direitos sexuais e reprodutivos de meninas e mulheres é uma pauta de costumes e que essa representa um contraponto à pauta econômica, como diria Débora Diniz, obscurece o fato de que se trata, na verdade, de uma pauta sobre justiça e igualdade. Costumes se estabelecem a partir da reiteração de hábitos, que se enraizam na cultura de uma comunidade. No entanto, esses costumes não “flutuam no ar”; eles são enraizados em relações sociais de gênero que, interseccionadas com raça, classe, entre outras, produzem desigualdades e cristalizam-se em tais costumes.

Não é possível, portanto, separar as ditas pautas econômicas e de costumes porque não se separa como se produz e reproduz a vida em uma sociedade de seus valores, ideologias e discursos. Portanto, garantir o aborto legal, seguro e gratuito a quem tem direito não é uma pauta menor ou dissociada da pauta econômica. Como podemos concluir a partir das reflexões de Débora Diniz, uma menina que é mãe na adolescência vê sua vida transformada: é atravessada pela violência e seus traumas, pode deixar de ir à escola, perder oportunidades de trabalho e de construir um futuro, e, sobretudo, de ser feliz. E essas meninas não são abstrações, elas são principalmente meninas negras, empobrecidas, das regiões Norte e Nordeste. Portanto, as desigualdades, compreendidas em sua complexidade, demandam uma abordagem interseccional, que articule classe, gênero, raça, etnia, idade/geração e outros marcadores sociais e, assim, não contraponham “pautas econômicas e de costumes”.

Em terceiro lugar, trata-se de um horizonte estreito, porque não apenas limita a potencialidade do projeto político progressista, de sua práxis e de sua utopia, mas também sua visão do “outro”, aqui entendido como a extrema-direita. Apesar do discurso populista que segue em voga, a esquerda brasileira está longe de estar no extremo. Ao contrário, no cenário de retrocesso que segue vigente no Congresso Nacional, setores da esquerda muitas vezes abrem mão de construir novos projetos para assumir posturas conciliatórias ou moderadas, voltadas à garantia de direitos estabelecidos constitucionalmente.

Parte do campo progressista não consegue compreender os interesses, discursos e coalizões fundamentalistas que se articulam em torno do projeto político da extrema-direita. Há uma leitura muito recorrente no campo progressista que pautas como a do PL do estupro servem como “cortina de fumaça” para as pautas reais (econômica). Assim, “enquanto ficamos aqui discutindo PL do estupro, ‘eles’ passam a boiada”. No entanto, o ataque aos direitos sexuais e reprodutivos têm funcionado como um eixo aglutinador de diversos setores conservadores, extrapolando as alianças de caráter econômico e ampliando a base de influência da extrema-direita. Nos Estados Unidos, como descreve Gayle Rubin em "Pensando o sexo" (o texto é de 1984, mas parece ter sido escrito em 2024, pela atualidade da crítica), a partir de 1977, a direita opôs-se centralmente à educação sexual, à diversidade sexual, ao aborto e ao sexo antes do casamento, como forma de interromper os avanços da contracultura e dos direitos civis. Essa linha política foi central para estrategistas de direita e fundamentalistas religiosos, uma vez que esses temas têm apelo de massa e atacam grupos relevantes na disputa de projetos políticos. Houve, em consequência, aprovação de novas leis restritivas ao aborto e cortes em programas de educação sexual e planejamento familiar, bem como limitações ao acesso de jovens meninas  a métodos contraceptivos e aborto.

Observa-se que, para os fundamentalismos, a pauta de gênero não é secundária; ela é a pauta central. Os ditos “costumes” são o mainstreaming (essa palavra é chave e será retomada em breve nesta reflexão) de uma perspectiva ideológica autoritária e hierárquica, que busca em um idílico passado suas referências. Passado esse que remete, no Brasil, a um país colonial, patriarcal e escravocrata. Assim, o projeto fundamentalista busca reestabelecer uma concepção homogênea de família (no singular); o controle dos corpos das mulheres e de como as pessoas experimentam a sexualidade, os desejos e os afetos; onde corpos negros podem ou não podem estar (podem estar servindo ou nas prisões, mas não em espaços de poder e de decisão) e como a diversidade sexual é patologizada. As questões de gênero e raça são centrais para o projeto da extrema-direita,para os avanços de neoliberalismo e para a reprodução do modo de produção capitalista excludente. De outro lado, a comunidade científica e profissional que conforma o campo de públicas e se volta à efetividade da administração pública, da gestão social e das políticas públicas, é orientada por princípios democratizantes, de construção de justiça, igualdade, bem-estar e sustentabilidade, e compreende a relevância das interações entre setores da administração pública e dos valores que orientam seus instrumentos e processos. Por isso, toma em conta as desigualdades e diferenças que merecem atenção pública para serem superadas.

Quando trazemos essa reflexão para as políticas públicas, é importante retomarmos o conceito de transversalidade de gênero, que é um processo de incorporação de perspectivas de gênero para reorientar o curso da ação pública, para comprometê-lo com a igualdade. Trata-se de um processo que, em grande parte das experiências de governos progressistas no Brasil e na América Latina, frequentemente ocupa não o centro - como sugeriria a ideia de gender mainstreaming - mas a marginalidade dos processos políticos e das políticas públicas.

O mesmo não ocorre, contudo, nos governos de direita e de extrema-direita. Neles, a questão de gênero é central e “transversaliza” as políticas públicas, incorporando uma perspectiva de gênero, ainda que com sinais trocados. Funcionam, portanto, como algo que denominamos de “destransversalização de gênero”, ou “transversalidade ao revés”. Ao invés de incorporar uma perspectiva de igualdade de gênero, esse processo aprofunda e legitima as desigualdades de gênero, mobilizando, para isso, ideologias como a do familismo e a do maternalismo. É o que as coalizões que se construíram em torno do PL do estuprador fazem e o que Damares Alves fazia, com excelência, no governo Bolsonaro. Sua intervenção na famosa reunião ministerial, ao se referir ao então recém-empossado ministro da saúde, Nelson Teich, é emblemática:

“O seu ministério, ministro, tá lotado de feminista que tem uma pauta única que é a liberação de aborto. Quero te lembrar, ministro, que tá chegando agora, este governo é um governo pró-vida, um governo pró-família. Então, por favor. E aí quando a gente fala de valores, ministro, eu quero dizer que nós estávamos, sim, no caminho certo”.

De outra parte, as controvérsias em torno do PL 1904/2024 também servem para lembrarmos dos desdobramentos políticos de iniciativas semelhantes em outros momentos de nossa história recente, como o PL 5069/2013, de autoria do então deputado federal Eduardo Cunha, à época do PMDB/RJ. O projeto, mote da bancada evangélica, dificultava o acesso das mulheres aos serviços de saúde relativos à interrupção da gravidez no caso de estupro, impondo a realização de corpo delito e do registro do Boletim de Ocorrência Policial. Impedia, ainda, o acesso à informação e orientações a respeito do aborto legal. Vale dizer que, em analogia às estratégias do avanço da extrema-direita norteamericana, o PL 5069/2013 coincidiu com a desestabilização democrática, uma vez que o próprio Eduardo Cunha foi um dos protagonistas da crise política de 2014, tendo ele mesmo instaurado e conduzido o processo do que ele denominava de impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff. Dois anos depois ele estaria cassado e preso, mas sua atuação deixou ranhuras importantes no sistema democrático brasileiro.  

 Ocorre que as reações a esse projeto de 2013 produziram um amplo movimento de mulheres progressistas, mobilizadas em protestos públicos que, no conjunto, foram  denominados “Primavera Feminista” ou “Primavera das Mulheres”. Esse movimento significou um revigoramento das políticas feministas e gerou marchas das mais numerosas do Brasil recente, antecedendo as grandiosas mobilizações do "Ele Não" em 2018. A ampliação da arena pública em torno da defesa dos direitos de meninas e mulheres ao aborto legal parece se repetir novamente agora, em 2024, em um movimento de contraofensiva que pode representar uma janela de oportunidades para a expansão de direitos individuais e coletivos. Ou, no mínimo, pode ser um momento singular para mobilizar inquietações, indignações e estranhamentos quanto à subcidadania de gênero, de raça, etária e de classe, que insiste em produzir algumas das maiores violações de direitos humanos no Brasil.

Se o nefasto PL do estupro serviu a algo, foi menos para abrir a caixa de Pandora, pois ela já estava aberta há tempos, e mais para explicitar que os demônios e as mazelas que foram dela libertados não voltarão para dentro da caixa se nos mantivermos apenas guardando nossa esperança, sem ações concretas. A esperança precisa servir para, efetivamente, vencer o medo na garantia de direitos sexuais e reprodutivos de meninas e mulheres brasileiras, para podermos avançar em um projeto político de igualdade e justiça social amplo.

* As autoras agradecem à Deborah Guaraná e à Masra de Abreu de Andrade a leitura e o compartilhamento de reflexões que subsidiaram o desenvolvimento dos argumentos.

**Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

Sobre as autoras:

Mariana Mazzini Marcondes, Professora do Departamento de Administração Pública e Gestão Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Ana Paula Antunes Martins, Professora do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB) e dirigente do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM/UnB).

Fernanda Natasha Bravo Cruz, Professora do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB) e diretora adjunta da Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas (ANEPECP).