Marcelo de Almeida Medeiros

 

A esperança que marca o final da Segunda Guerra Mundial e que inspira Edith Piaf a compor sua mundialmente conhecida canção parece ter abandonado a França nas últimas décadas[1]. La vie en rose, que embala a França liberta do jugo nazista e ecoa por toda Europa - e mundo afora - celebrando o fim de uma era sombria, repleta de horrores e de atentados à humanidade, parece hoje démodé.

A ascensão fulgurante da extrema direita na Europa, em geral, e na França, em particular, aflora como um flerte - ou quem sabe algo até mais sério e comprometedor - com velhas premissas antidemocráticas, discriminatórias e messiânicas. As recentes eleições para o Parlamento europeu apontam, nitidamente, para isso: a direita aumentou em 11% o número de assentos, enquanto as forças de centro tiveram uma diminuição de 24%[2]. No caso da França, a vitória do La France revient! de Marine Le Pen foi estarrecedora, tendo conquistado mais do que o dobro de votos dados à legenda do Presidente Macron - Besoin d'Europe: 30 e 13 assentos respectivamente, de um total de 81.

O corolário é a inesperada dissolução do Parlamento e a convocação antecipada de novas eleições. Aposta deveras arriscada do Presidente francês que, com isso, assume o risco de perder a maioria que possui no Palácio Bourbon. Perdeu. E mais: assustou todo o país quando o primeiro turno sentenciou um Rassemblement National com uma mão no cetro do poder. Solução? Constituir uma aliança eleitoreira - posto que inconcebível ideologicamente - com o Nouveau Front Populaire, que tem como um dos principais caciques Jean-Luc Mélenchon, político do partido de extrema-esquerda La France Insoumise, com chances reais de se tornar primeiro-ministro.

Duas perguntas que não calam: Por que Macron dissolveu o parlamento? Por que o cidadão francês tem, paulatinamente, manifestado preferência pelas ideias da extrema-direita ?

Do ponto de vista racional, Macron não deveria ter dissolvido o Parlamento. Desde sua primeira eleição, em 2017, o número de deputados na maioria presidencial estava em queda. Ele passou de 350 no final das eleições legislativas de 2017, para 246 em 2022. Em contrapartida, neste mesmo período, a extrema direita de Marine Le Pen conhecia um crescimento meteórico na Assembleia, passando de 8 deputados em 2017 para 89 em 2022. Então não é nenhuma surpresa, quando o resultado das eleições de 2024 registra 168 eleitos para o partido presidencial, enquanto a extrema direita chega a cerca de 140 cadeiras[3]. Além disso, o Nouveau Front Populaire angaria em torno de 180 assentos, provocando, dessa forma, uma situação complicada em termos de constituição de maioria para exercício do governo. Em suma, os votos do centro-direita macronista parecem estar sendo gradualmente drenados para ambos os extremos. Diante dessa inevitável tendência, o presidente francês, ao dissolver o parlamento, sugere ter optado por uma ação irracional e intempestiva de alto risco, mas de significativo impacto cujos efeitos esperados seriam chamar à atenção e, pari passu, sensibilizar dramaticamente o cidadão para o real perigo da ascensão da extrema-direita. Trocando em miúdos, tal qual fizera, em 1969, Charles De Gaulle, fez uso de um perigoso instrumento político: o referendum. Na verdade, um pseudo-plebiscito que, in fine, o desautorizou. De Gaulle partiu. Mas Macron ficou. E deve se preparar para uma coabitação difícil, cujos primeiros indícios já afloram com a patente dificuldade de indicação de um Primeiro-ministro.  

Contudo, por que o cidadão francês tem, gradativamente, revelado propensão pelas ideias da extrema-direita? Conquanto o autoritarismo tenha aterrorizado e devastado a Europa em meados do século passado e o regime de Vichy tenha deixado indeléveis cicatrizes no imaginário popular, paira, já há alguns anos, um desencantamento em relação ao regime político em voga. Para muitos ele não é mais capaz de atender aos seus anseios. Com efeito, há uma percepção generalizada de redução da qualidade de vida que, para muitos, deriva de uma política migratória indulgente que ameaça os empregos, a seguridade social e a própria identidade francesa. A conversão de políticas públicas migratórias fundadas em uma ótica assimilacionista - que privilegia o caráter nacional - em políticas públicas arrimadas em uma perspectiva integracionista - que favorece uma cidadania pós-nacional, não parece ter sido bem aceita por parte significativa dos cidadãos[4]. Muitos se perguntam: "até quando teremos que pagar a dívida histórica da colonização?" O Rassemblement National surge, nesse contexto, como a opção do Basta! Do Assez! Uma alternativa ainda não testada, que seduz pela natureza desconhecida e pela roupagem que, há anos, tenta se despir do ranço nacionalista exacerbado, pregando firmeza, mas com moderação. Como toda miragem, a visão proposta assemelha-se à realidade desejada. Que, de fato, não existe. A dominação carismática já mostrou seu poder e consequências nefastas[5]. Sua capacidade de neutralizar os mecanismos democráticos é por demais poderosa, banindo toda e qualquer expectativa de reversibilidade. O caminho rumo ao poder absoluto é sem volta. E o resultado do segundo turno parece revelar que, por enquanto, essa não é a aspiração do povo francês.

Encontrar o equilíbrio entre Estado e mercado tem sido o constante desafio das forças de centro. Porém elas têm falhado em várias partes da Europa. Direita e esquerda tradicionais fracassaram nos últimos escrutínios, abrindo espaço para a escalada dos extremismos.  É presumível que o perfil do povo francês tenha se transformado e que no sacrossanto tripé da República: Liberté, Égalité e Fraternité, o peso da irmandade tenha minguado. Advindo da globalização, o aumento vertiginoso da porosidade das fronteiras impõe convivências complexas às diferentes gentes, assim como engendra uma competitividade selvagem entre os agentes produtivos. O que obriga uma readequação principiológica dos partidos de centro. Sopesar o lugar da Liberdade, Igualdade e Fraternidade é preciso. Caso contrário corre-se o risco de uma hipertrofia nacionalista e autoritária danosa às convicções democráticas egressas da Revolução de 1789.

A governabilidade da França está em xeque. A extrema direita foi barrada, in extremis, mas se encontra fortalecida e bem instalada na Assembleia Nacional. Passada a eleição, a aliança oportunista entre o Nouveau Front Populaire e o ENS Ensemble deve, provavelmente, fraquejar, tornando a tomada de decisão no hemiciclo gaulês uma verdadeira incógnita. A situação é tão preocupante que se cogita a possibilidade do uso do Artigo 16 da Constituição, o qual pode ser acionado em caso de ameaça grave e imediata contra as instituições da República e em caso de interrupção do funcionamento regular dos poderes públicos. Nesse caso, o Presidente exerce os poderes legislativo e executivo[6].

Vai-se longe o tempo alcunhado de Trente Glorieuses (1945-1975). Três décadas marcadas por forte crescimento econômico na maioria dos países desenvolvidos, notadamente os membros da OCDE. Vai-se longe, igualmente, a histórica alternância, na França, entre o centro-direita de inspiração gaulista e o centro-esquerda de estirpe socialista. As agremiações partidárias extremistas fazem-lhes, hoje, frondosa sombra. Velhos fantasmas que outrora penitenciaram vários povos, privando-os da democracia, estão acordados. La vie en rose? C'est fini!

 Notas

[1] La vie en rose, música lançada em 1946, possui letra de Edith Piaf e melodia de Louis Guglielmi.

[2] https://results.elections.europa.eu/pt/ferramentas/ferramenta-comparativa/ (Acesso em 26/06/2024).

[3]Cf.https://www.lemonde.fr/les-decodeurs/article/2024/07/07/l-evolution-de-la-composition-de-l-assemblee-nationale-depuis-2017_6247604_4355770.html (Acesso em 13/07/2024).

[4] Cf. GODOY, PETRA KARINA BARROS DE ; MEDEIROS, MARCELO DE ALMEIDA ; LIMA, RAFAEL MESQUITA DE SOUZA . France, Terre d'Accueil? Integration and post-national citizenship in French legislation (2001-2022). REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICA INTERNACIONAL (ONLINE), v. 67, p. e006, 2024.

[5] Cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009.

[6] Cf. O Artigo 16 foi utilizado de 23 de abril a 29 de setembro de 1961, após o golpe dos generais na Argélia.

 

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

Sobre o autor:

Marcelo de Almeida Medeiros é Professor Titular de Política Internacional Comparada no Departamento de Ciência Política da UFPE. Pesquisador PQ-1C do CNPq. E-mail: marcelo.medeiros@ufpe.br