Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

Obra prima cinematográfica, a película Duna (2021/2024), dirigida por Denis Villeneuve, chegou em 2024 aos cinemas brasileiros com grande adesão de público e crítica. Adaptação de um clássico seminal da ficção científica de mesmo nome, escrita pelo estadunidense Frank Herbert (1920-1986), com o primeiro livro lançado em 1965, passados quase sessenta anos, tendo influenciado toda uma geração de livros e filmes do gênero.

Duna é uma obra política. Discute colonialismo, manipulação da população e a mistificação dos líderes de massas. Destaca-se que a economia do império intergaláctico que permeia a história é baseada em um produto chamado especiaria, que amplia as capacidades da mente humana, uma habilidade que se revela importante no processo de navegação entre os planetas nessa mitologia, encontrando-se essa substância apenas no planeta desértico Arrakis, chamado por seus habitantes de Duna, palco dos filmes citados.

A similitude desta discussão se dá em muito com a ideia do Demônio de Laplace (1749-1827), tese mecanicista do físico europeu de mesmo nome, que defende que de posse de todas as variáveis que determinam o estado do universo em um instante, pode se prever o que ocorrerá mais à frente. A especiaria abriria as possibilidades de captação e processamento de informações, dando a quem lhe consome percepções sensoriais expandidas, para assim vislumbrar cenários e indicar futuros prováveis, em um tipo não transcendente, e determinista, de presciência.

De forma simplista, pode-se dizer que a especiaria mitigaria a racionalidade limitada (Simon, 1979), em uma ideia de que o processo de decisões administrativas nos impõe opções baseadas em premissas factuais, que não conhecemos claramente, e que não podem ser determinadas com segurança à luz do tempo e informações disponíveis, limitando-se a nossa racionalidade pela ausência de conhecimento, e ainda, devido a capacidade de processamento do ser humano.

Ao procurarmos vagas em um Shopping Center, vemos uma disponível e distante da entrada, e a nossa racionalidade limitada no processo decisório nos impede de saber se aquela é a vaga mais vantajosa ou se existe uma melhor mais à frente. E se não usarmos esta, podemos perdê-la na volta. Decidimos sem saber todos os cenários possíveis, e mesmo que soubéssemos, teríamos limitações no processamento dessas informações.

Esse longo introito, desse texto que se propõe a discutir questões relacionadas a gestão pública, se destina a, de forma metafórica, mostrar que as ações estatais no Século XXI podem ser incrementadas, se permeadas pelo uso de uma especiaria poderosa, que mitiga a nossa racionalidade limitada, ampliando a nossa capacidade de captar e processar informações, gerando cenários, permitindo vislumbrar futuros e tendo utilizações bem práticas no âmbito das políticas públicas: a especiaria de Duna no Século XXI é a IA-Inteligência Artificial.

Com uma espantosa capacidade de processamento e articulação de informações, a IA é uma ferramenta que pode levar a gestão das políticas públicas a outro estágio. Não apenas pela automatização de atividades rotineiras e padronizadas, mas pela capacidade de articular uma quantidade enorme de informações, enxergando direções, padrões, lacunas, e assim, resolvendo questões cruciais no âmbito dos diagnósticos e de processo decisório das políticas públicas.

Destaca-se nessa discussão, pelas limitações do presente artigo, a capacidade diagnóstica da IA, que traz a questão do monitoramento da implementação a um outro patamar. Diante de grandes massas de dados, produzidas de diversas formas, inclusive por dispositivos móveis, na ideia de Big Data, informações fragmentadas podem ser associadas dentro do que se espera de um programa de governo para analisar o comportamento dos processos e dos atores, gerando informação útil, tempestiva e de qualidade.

Assim são construídos cenários, identificadas tendências e ainda, criada inteligência que possibilite alertas e realimentações, reduzindo a chance de diagnósticos ex-post e enviesados. A ciência do diagnóstico é subordinada diretamente a capacidade dos instrumentos, e por vezes, na gestão da política pública, os olhos se voltam para o que é mais fácil de se detectar do que é mais relevante na lógica do programa, na ideia de que "(...) ignoramos riscos mais difíceis de aferir, mesmo quando oferecem maiores ameaças ao nosso bem estar." (Silver, 2012, p.26).

Assim como a especiaria se torna relevante em Duna por conta das viagens espaciais para outros planetas, a descentralização da União para estados e municípios da política social traz mais importância à aplicação da IA nas políticas públicas, em cenários mais complexos, com mais transações, permitindo construir diagnósticos mais precisos, que indiquem tendências, sem cair na ilusão totalizante do mecanicismo determinista, que despreza questões importantes, como trazidos pela teoria do caos (Wood Junior, 1993), por exemplo.

O que se deseja com a IA nesse sentido não é futurologia, mas aumentar a capacidade de se enxergar movimentos e tendências, possibilitados pela capacidade de captar e articular informações. Um programa como o de vacinação tem muito a se beneficiar do uso de captação de informações de diversas fontes associado ao uso de IA para gerar diagnósticos sobre quesitos específicos, que realimentariam com mais qualidade formuladores, gestores e avaliadores.

Para a qualidade do processo decisório nas políticas públicas, em um sentido estratégico, e no relacionado processo de monitoramento e avaliação, o uso de IA é uma nova fronteira a ser explorada, que trará uma capacidade mais ampliada, como a especiaria de Duna, que se reverte em poder para a gestão das políticas públicas, em especial na construção da efetividade. Como diz a obra Duna (Herbert, 1984): “Quem controla a especiaria, controla o universo.”

Referências

Herbert, Frank. 1984 [1965] Dune. New York, NY: Berkley Books.

Silver, Nate. 2012. The signal and the noise – The art and science of prediction. Londres:Penguin.

Simon, Herbert A. 1979. Comportamento administrativo: estudo dos processos decisórios nas organizações administrativas. FGV: Rio de Janeiro.

Wood Junior, Thomaz. 1993. Caos: a criação de uma nova ciência? as aplicações e implicações da teoria do caos na administração de empresas. Revista de Administração de Empresas, [S.L.], v. 33, n. 4, p. 94-105. 

Sobre o autor:

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (PPED/IE/UFRJ)

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

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