Leonardo Barros Soares

O Congresso nacional derrubou, ontem, quase a totalidade dos vetos que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aplicou ao Projeto de Lei 2.903/2023 (agora sancionada como Lei 14.701/2023), instituindo, dentre outras medidas prejudiciais aos povos indígenas, a famigerada tese do Marco Temporal para as terras indígenas. Como é sabido, trata-se da ideia de que indígenas só fariam jus à demarcação de suas terras se estivessem ocupando-as à data da promulgação da Carta Magna de 1988 ou pudessem demonstrar algum tipo de resistência ativa ao processo de despossessão naquele período. Já julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no segundo semestre de 2023, a tese retorna, desafiadora, em forma de lei.

Para sermos honestos, a tese não é nova. Circula nos meios jurídicos há décadas e ganhou inclusive “cidadania” dentro das esdrúxulas condicionantes propostas no acórdão do julgamento da validade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. No meio político ela tampouco é recente, alimentando sub-repticiamente as diversas iniciativas antiindígenas que periodicamente emergiram no parlamento dominado por ruralistas nas últimas três décadas. Além disso, como é conhecido até do mundo mineral, se há uma classe que pode ser denominada governante do país desde as caravelas é aquela formada pelas oligarquias rurais, que sempre estiveram – e, imagino, sempre estarão- muito bem representadas nos três poderes da república. Uma legislação que contivesse um dispositivo como o Marco Temporal sempre foi o sonho molhado desse segmento poderoso. Então, cabe perguntar: por que só agora eles conseguiram? O que aconteceu nesses últimos anos que pode explicar esse fato?

Sem a pretensão de esgotar o assunto, minha hipótese provisória é a seguinte: a fragilização do presidencialismo, a radicalização ideológica dos partidos de direita e o aumento da pressão econômica sobre as terras indígenas são três fatores-chave para a explicação desse fenômeno. Explico-me.

Primeiro, olhemos para as constantes quando lançamos uma mirada para a história das relações entre indígenas e não indígenas no Brasil. Por um lado, conforme já mencionei, há o fato histórico da extrema concentração de terras nas mãos de poucos donos, característica estrutural do estado brasileiro e jamais sequer arranhada por quaisquer dos governos de turno. Ser proprietário de terras é um bom negócio em qualquer lugar do mundo, sem dúvida, mas me pergunto se há algum lugar no planeta em que a concentração fundiária se reverta de tal forma em poder político como em nosso contexto. Foi assim durante o império, na República Velha, e continua assim até hoje, com o adicional de que além de poderoso, agora o agro também é pop.

Por outro lado, há o fato da resistência indígena. Secular, ela tem crescido e expandido seu repertório de ação de forma inédita em nosso país nos últimos anos. Como costumo dizer, o movimento indígena é aquele com maior capacidade de mobilização rápida, estendida e contundente hoje no país. A maior bancada indígena foi eleita para a atual legislatura. A força da advocacia indígena já foi demonstrada inúmeras vezes em seu constante acionamento de órgãos judiciários nacionais e internacionais. Em suma, o movimento indígena é um ator coletivo pujante e incontornável no Brasil contemporâneo.

Se o binômio força política ruralista – resistência indígena é um dado de nossa história, então o que mudou para que a legislação mais devastadora para os direitos indígenas passasse exatamente nesse momento?

Em primeiro lugar, é forçoso reconhecer que o Executivo forte herdado da ditatura civil-militar de 1964 e recebido pela constituição de 1988 foi ferido de morte com a progressiva usurpação, por parte do Parlamento, de suas competências em matéria orçamentária. Sem o controle orçamentário pleno, fica evidente o esvaziamento dos poderes da presidência da república e reduz-se sua capacidade de controle da base partidária no congresso, um dos pilares do mecanismo de funcionamento do presidencialismo de coalizão. Sem  esse instrumento fundamental, partidos da base dão um sonoro “dane-se” para matérias que contrariem seus projetos políticos ou sejam demasiado caros ao partido formador da coalizão. A votação do PL e a derrubada de seus vetos são, a meu juízo, evidências estrondosas que respaldam esse argumento.

Em segundo lugar, a temática indígena deixou de ser uma espécie de assunto relativamente “suprapartidário”, como o era na década de 1990, e entrou no pacote de pautas não-negociáveis dos partidos de direita e extrema direita. Jair Bolsonaro, por exemplo, é mobilizado pelo assunto a um nível quase pessoal, de modo incomparável com os demais presidentes. Bem entendido, o ódio a povos indígenas e tudo o que representam sempre esteve presente no parlamento e nos partidos. O que é novo é a intensidade da radicalização das preferências desses grupos políticos, dentro do contexto maior de radicalização do lado direito do espectro político brasileiro.

Por último, as terras indígenas estão na rota de colisão com o crescimento do consumo mundial de commodities minerais e o aumento da pressão do desmatamento para fins agropecuários e de arrecadação de terras para exploração privada. Trata-se de um fenômeno global, como atestam as recentes legislações que ampliam a degradação da região amazônica aprovadas no Peru e no Equador. Desmatadores, mineradoras, grileiros, empresários, milícias, garimpeiros, governos estaduais e até internacionais estão sedentos por carne fundiária nova, e salivam ao entreverem a possibilidade de penetrarem de modo fatal no coração de territórios tradicionais. É uma pressão violentíssima que, infelizmente, está vinculada, de várias maneiras, às bases materiais do que os não indígenas como nós consideramos como liberdade e bem-estar. Em última análise, o capitalismo tardio não tolera a existência de lugares existenciais fora dos circuitos mercadológicos financeiros globais, e as terras indígenas são um dos últimos redutos do planeta em que viver não está precificado.

A ação desses três fatores, em conjunto, produziu a janela de oportunidade para que uma lei tão danosa fosse gestada e aprovada em nosso parlamento. Mesmo que sua inconstitucionalidade seja reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, a fissura na proteção constitucional às terras indígenas se ampliou e ameaça colocar todo o edifício jurisprudencial e de políticas públicas das últimas décadas abaixo. As cenas dos próximos capítulos tendem a ser cada vez mais violentas, com os atores políticos dobrando as apostas contra os indígenas. Compreender a natureza contemporânea desse conflito, a partir do exercício que aqui fizemos, é parte importante para ajudar os tomadores de decisão a se posicionarem de modo mais informado e consequente nos próximos anos. 

Mais sobre o autor:

Leonardo Barros Soares é mestre e doutor em ciência política pela UFMG. Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFV. Coordenador do grupo de pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas (POPIAM) e da ABCP Indígena. E-mail: leonardo.b.soares@ufv.br.

 

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