Ian Batista

 

O ano de 2024 mal começou e já se antecipa que será histórico. Metade da população global, mais de 4 bilhões de pessoas, irão às urnas para votar em eleições presidenciais, legislativas ou regionais para decidir sobre seus futuros particulares e, consequentemente, nosso futuro coletivo mundial. Estados Unidos, Índia, México e Parlamento Europeu, são alguns exemplos de eleições democráticas com impacto internacional, em menor ou maior escala. Rússia, Venezuela e Ucrânia são exemplos de eleições com grande influência no cenário global, mas que preocupam sob em que condições ocorrerão. O que significa na prática tantas eleições ocorrendo no mesmo ano? E quais as principais preocupações para esses ciclos eleitorais no ano de 2024?

Países que terão eleições nacionais ou regionais em 2024

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Fonte: O autor, com dados de Anchor Change

Primordialmente, é preciso se considerar que ainda que ocorram em datas distintas ao longo do ano, teremos centenas de ciclos eleitorais sobrepostos acontecendo ao mesmo tempo. Isso significa dizer que teremos etapas pré e pós-eleitorais acontecendo ao mesmo tempo em lugares distintos. Enquanto um país celebra sua eleição, outros estarão em campanhas eleitorais e outros estarão validando resultados e transitando administrações, por exemplo. Pela instantaneidade das comunicações nos dias de hoje, seguramente teremos pontos de contato onde acontecimentos de um processo eleitoral impactarão a corrida eleitoral em outros lugares. O principal exemplo é a eleição presidencial nos EUA, marcada para novembro, dada a relevância desse país no sistema internacional e tudo que estará em jogo naquela disputa.

Já em fevereiro, iniciam-se as campanhas para as primárias partidárias, onde o ex-Presidente Donal Trump é favorito para ganhar do lado Republicano e o atual presidente Joe Biden é o favorito do lado Democrata. Em disputa aqui estará qual o tipo de atuação da principal potência militar e econômica no sistema internacional, se veremos o retorno de uma política externa trumpista simpática a Rússia, isolacionista e pouco engajada na promoção de temas como direitos humanos e transição energética. Ou se assistiremos a continuidade da política Biden engajada na promoção internacional, mais em discurso do que necessariamente em prática, de democracia e crítica a regimes autoritários (selecionados).

É plenamente possível que a depender da corrida presidencial nos EUA, candidatos ao redor do globo mais ou menos simpáticos a Trump se beneficiem de uma boa performance do republicano ou se prejudiquem a depender de deslizes ou dos obstáculos judiciais que este pode enfrentar ao longo da campanha. É evidente que as condições nacionais, contexto político e situação econômica local tendem a imprimir maior impacto nos rumos das eleições, mas não se pode negar a influência que um Trump favorito nos EUA pode exercer nas campanhas de líderes simpáticos a ele como Nayib Bukele em El Salvador ou Narendra Modi na Índia. Esses líderes já trocaram elogios com Trump publicamente e assumem em seus países discurso nacionalista similar. São franco favoritos em suas disputas a reeleição por méritos próprios, mas encaram as urnas no mesmo ano em que o principal expoente internacional de seu tipo de política também será posto à prova. Bukele busca uma inconstitucional reeleição em fevereiro, e é favorito ao gozar de ampla aprovação popular. O partido Bharatiya Janata, do primeiro-ministro Modi, é também favorito para manter a maioria legislativa na Índia e posteriormente reconduzi-lo ao cargo, em uma eleição planejada para se estender por algumas semanas entre abril e maio dados os desafios logísticos da maior eleição do mundo.

Para além do espectro trumpista mundo à fora, o apoio e a influência direta do regime russo a campanhas de candidatos de orientação ideológica conservadora ao redor do globo já são amplamente evidenciados. Uma das poucas certezas para o ano que vem é que Putin será reeleito presidente da Rússia em março, em uma eleição desvirtuada, e após isso se preocupará com eleições em outros lugares. Somados esses elementos, a possibilidade para 2024 é de um fortalecimento conjunto da direita global conservadora, mutuamente se fortalecendo em diferentes países.

Mas, os EUA não só influenciarão outras eleições, como já estão sendo influenciados por outras. É o caso da eleição presidencial na Venezuela, prevista para o segundo semestre. O governo Biden promoveu uma mudança de abordagem na maneira com que os EUA lidam com o principal problema do hemisfério americano, a questão humanitária venezuelana. De uma abordagem de máxima pressão internacional encaminhada na gestão anterior, com sanções econômicas e não reconhecimento da reeleição de Nicolas Maduro em 2018, os EUA passaram a tentar promover e azeitar o diálogo entre governo e oposição com 2024 em vista. A ideia seria utilizar o levantamento de sanções econômicas e troca de presos políticos como barganha para condições para eleições presidenciais limpas. Na prática, cada passo logrado ou anunciado nesse caminho eleitoral venezuelano repercute na Câmara e no Senado americano, onde os políticos republicanos monitoram o que seriam passos equivocados dessa participação americana nas negociações do país sul-americano. O levantamento de quase todas as sanções econômicas ao país em outubro de 2023 e a liberação de aliado de peso do regime madurista que estava preso nos EUA, ao passo em que a principal candidata opositora, Maria Corina Machado, segue inelegível são marcos que, por ora, refletem na percepção doméstica de que a administração Biden foi demasiada benevolente com um regime tão sensível aos eleitores latinos. E isso é uma carta valiosa à campanha republicana.

Tantas eleições desenroladas ao mesmo tempo em vários lugares compartilharão ainda desafios parecidos. Um ponto de atenção para a maratona eleitoral de 2024 é a maneira com que ferramentas de inteligência artificial (IA) generativa serão utilizadas por campanhas políticas e, mais importante, como seu uso será regulamentado mundo afora. O impacto da desinformação em eleições ao redor do globo tem sido crescente, e o desenvolvimento meteórico da tecnologia de criação de texto, imagens, áudios e vídeos pode comprometer ainda mais o debate e a competição íntegra em campanhas eleitorais. Em 2023 o uso de IA em campanhas políticas já se tornou realidade. Na Argentina, as campanhas dos dois candidatos que se enfrentaram no segundo turno, o oficialista Sergio Massa e o oposicionista Javier Milei, contaram com imagens geradas em IA que os representavam de maneira patriótica, salvadora e até populista. Ao mesmo tempo, vídeos montagens traziam o rosto de Sergio Massa fazendo uso de drogas ilícitas, de maneira quase irreparável, ou a recriação de Margaret Thatcher ordenando o ataque às ilhas Malvinas, em um ataque de Massa à Milei. A IA leva a desinformação para outro patamar, e legisladores devem correr para regulamentar seu uso.

Nesse sentido, a União Europeia parece ter largado na frente com o Parlamento Europeu acordando o AI Act, um entendimento de regulamentação pioneiro no mundo sobre o uso de inteligência artificial. Ainda que careça de aprovação, implementação nos 27 países membros e discussões específicas ainda precisarão ser feitas, o ato propõe normativas de maior transparência no funcionamento da tecnologia, a necessidade de declarar quando IA for utilizada, supervisão humana do funcionamento da tecnologia e ainda maiores ou menores requerimentos a partir do nível de risco da aplicação. A tendência, contudo, é que o ato não esteja plenamente implementado em todos os países a tempo das eleições para o Parlamento Europeu em junho de 2024. Mas o precedente e a referência de regulamentação estão lançados para a inspiração de outros países.

Por tudo isso, como sempre a confiança da população nas eleições e em quem administra as eleições será chave em 2024. Os discursos de fraude eleitoral entoados por perdedores nos últimos anos podem também ser intensificados se essas vozes ecoarem em diferentes lugares ao mesmo tempo. Para lidar com esse desafio, uma administração eleitoral profissional, independente e transparente será chave, tanto para a entrega de um processo justo quando para combater narrativas de desinformação. Alguns organismos eleitorais possuem retrospectos melhores que os outros e podem servir de exemplo, como Instituto Nacional Eleitoral (INE) do México. O país celebrara uma eleição gigante em junho de 2024, elegendo mais de 20 mil cargos eletivos entre presidente, senadores, deputados, legisladores locais (em 30 de 32 estados) governadores (em 8 de 32 estados) e prefeitos (em 29 de 32 estados). Para isso contará com a expertise e a autonomia do INE, organismo estatal fundamental para o processo de democratização mexicano na virada do milênio, e assim reconhecido por considerável parte da população. O INE administra todo o processo eleitoral, garantido condições iguais de disputa política entre os partidos do país. Serão recrutados 1.5 milhões de trabalhadores, com uma estrutura de 117 mil estações de votação pelo país, e ainda realizando atividades de monitoramento de mídia tradicional e online, regulamentação de doações e de finança de campanha, dentre outras.

As eleições mexicanas de 2024 acontecem após o atual presidente Lopez Obrador intentar um duro golpe às capacidades do INE durante seu mandato. Um projeto de reforma dessa instituição, aprovada pelo Congresso, mas declarada inconstitucional pela suprema corte mexicana, tentava reduzir bruscamente o orçamento e as áreas de atuação do INE, sob discurso de corte de gastos públicos. Obrador há alguns anos alimenta embates com essa instituição após derrota nas eleições presidências de 2012 por uma pequena margem, o que o levou a acusar o organismo de fraude eleitoral. O recente projeto de reforma foi acompanhado de protestos massivos na Cidade do México, onde parcela da sociedade declarou apoio à atual estrutura do INE e reconheceu a importância dessa instituição para a democracia mexicana. As eleições vindouras serão nova oportunidade para o INE demonstrar seu valor, e não existem dúvidas de que essa instituição está à altura do desafio. Obrador, que não pode se reeleger, já indicou a candidata sucessora pelo partido, Claudia Sheinbaum, atual prefeita da Cidade do México.

Mas, os principais desafios logísticos para eleições no próximo ano estariam sob escombros de guerra. O mandato do atual presidente ucraniano Vladmir Zelensky expira em março de 2024, mesmo mês em que a constituição daquele país prevê novas eleições. Ainda que a atual lei marcial do país proíba qualquer eleição enquanto a Ucrânia estiver em guerra, pressões internacionais levam Zelesnyk a considerar a realização de eleições. Os desafios para isso são inúmeros, como eleitores deslocados dentro e fora do país, locais de votação destruídos, registro de eleitores desatualizados, financiamento e condições para campanhas. Uma pesquisa de opinião aponta que 80% dos ucranianos entrevistados são contrários a realização de eleições durante a guerra. Mas a Ucrânia é outro processo político que se relaciona mutuamente com a disputa presidencial estadunidense. Congressistas mais extremos do partido Republicano críticos do apoio financeiro dos EUA ao país em guerra querem condicionar a continuidade da ajuda a um comprometimento ucraniano com a sua democracia, isto é, realizar eleições como prevê sua constituição. Isso tem levado Zelensky a admitir a possibilidade de mudar a legislação do país para possibilitar as eleições em março, o que também seria politicamente benéfico para ele. O presidente já afirmou que não buscaria reeleição caso as eleições fossem realizadas após a guerra, mas o mesmo desponta como favorito caso a eleição aconteça no início do ano que vem.

Essa quantidade histórica de eleições nacionais acontecendo no mesmo ano permite atestar de antemão que o mundo não será o mesmo após essa nova volta em torno do sol. Os distintos processos eleitorais farão o mundo girar figurativamente mais do que 365 vezes nesse novo ciclo. Pela influência mútua e interconectada de distintos processos eleitorais, novos desafios de tecnologia e desinformação, e as conhecidas dificuldades administrativas e de confiança nos organismos eleitorais, a mudança global será rápida, e requer nossa atenção aqui, ali e em todo lugar.  

Sobre o autor:

Ian Batista é assistente de projetos no Carter Center e foi selecionado como Junior Fellow do Electoral Integrity Project para o ano de 2024. Doutorando em Ciência Política na UFPE.

 

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