Rosangela Hilário

Maria Luiza Saraiva-Pereira

Maria Ribeiro

 

No terceiro dia de 2024, um jornal de grande circulação imprimiu a opinião de um professor titular e membro da academia tal que, sendo um homem branco, ocupou o espaço aberto do periódico para anunciar a inviabilidade das “bancas étnicas” devido à miscigenação: somos todos humanos mestiços. Afirma o membro da academia — físico e tudo — que a adoção de políticas de ação afirmativa para a contratação de docentes “PPI” (pretas, pardas e indígenas) é dos maiores “equívocos” cometidos pela Universidade de São Paulo, “ao nosso ver”. Mesmo não sendo possível declarar os nomes do “nós” que emprestam materialidade para o “nosso ver”, posto assinar sozinho o texto, compreendemos que as pessoas signatárias, inequivocamente, estão alheias à realidade sociogenética do planeta Terra, salvo conhecimentos sobre aspectos gerais de fenômenos naturais.

Nossa primeira lição para o professor — premiado nos Estados Unidos da América e tudo — é a seguinte: O racismo não é um fenômeno natural, mas um projeto societário politicamente produzido, inclusive, com auxílio das instituições de ensino superior brasileiras e demais. Todas as instituições brasileiras são racistas. Todas. Quer dizer, por exemplo, que de acordo com as estatísticas disponíveis, um projétil de arma de fogo — independente do movimento dos gases circulantes no interior do cano, do ângulo do disparo, da resistência do ar, da gravidade etc., o projétil de arma de fogo atinge, no Brasil e prioritariamente, pessoas “PPI”. Assim, desde quando um português encontrou uma pessoa indígena e deu início a maior pandemia por contato jamais vista. Assim, enquanto as pessoas nos leem no ano de 2024. Isso é o que chamamos “História”.

Desde o desinformado diagnóstico do professor doutor, as “leis raciais” devem ser reconhecidas por suas “boas intenções”, muito embora o que quer tenha acontecido no passado deva permanecer no passado ou “divisão e ressentimento” no futuro. É desinformado o diagnóstico do professor doutor porque a vida social dos seres vivos se dá em continuum, de modo que passado, presente e futuro são eventos concomitantes e a grande maioria das pessoas brasileiras está sujeitada à lógica colonial desembarcada no país há cinco séculos e cujos mecanismos de funcionamento são, ainda hoje, infalíveis.

As universidades são núcleos de produção de conhecimento que, por sua vez, informam políticas públicas e cronogramas para a liberdade com vistas ao crescimento da razoabilidade concreta no mundo. Segundo o Censo da Educação Superior mais recente, de 2016, contamos 219 professoras pretas doutoras em cursos de pós-graduação no Brasil; ou seja, 0,4% do corpo docente. Se somarmos as mulheres pretas e pardas com doutorado, concluindo o grupo de “negras”, não alcançaremos os 3% daquelas docentes em cursos de mestrado e doutorado. Considerados os números a partir do recorte de mulheridades — pois exibimos especificidades e, além de negras, somos trans, com deficiência, refugiadas etc. — assistimos ao despencar tão abrupto dos índices que sequer podemos encontrá-los.

Tudo dito para dizer que as políticas de ação afirmativa são um levante antirracista que, por sua vez e sua natureza, beneficiam todas as pessoas da nossa comunidade biótica. Não nos orientamos pela lógica colonial do “eu versus outro”, mas pelo bem viver aquilombado que repete “eu sou porque somos”. Nós somos todas as pessoas e seguiremos lutando por um ordenamento jurídico alternativo às leis que determinam o genocídio da população negra e o epistemicídio.

Sobre as autoras:

Rosangela Hilário, Maria Luiza Saraiva-Pereira e Maria Ribeiro integram a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

Sobre a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas:

Acesso: https://mulherescientistas.org/

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

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