Helena Branco

 

 O impacto das mudanças climáticas na sociedade não é homogêneo, e está condicionado a dinâmicas de gênero, raça e classe de cada território. Sabemos, por exemplo, que mulheres e crianças têm 14 vezes mais chances de morrer durante um desastre relacionado ao clima, mas é urgente ir além e entender como as desigualdades vulnerabilizam populações em cada parte do globo.

O final de 2023 foi marcado por discussões a respeito da 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada em Dubai. Em meio a diversos conteúdos produzidos durante e após o evento, uma pergunta surgiu: o que a temática de gênero tem a ver com tudo isso e como o Brasil atuou nessa temática?

A lente de gênero passou a integrar anualmente a agenda das COPs (Conferência das Partes) desde 2012. Em 2023, sediada nos Emirados Árabes Unidos, a agenda da COP 28 contou com negociações para um texto de decisão sobre Gênero e Mudança Climática. O objetivo principal era estabelecer sinalizações políticas e detalhes operacionais para que, em 2024, a atualização do Plano de Ação de Gênero (GAP, em inglês) estivesse encaminhada.

Paralelamente, havia expectativas quanto à temática de financiamento climático responsivo à gênero (ou seja, financiamento para políticas que não apenas reconhecem, mas promovem ativamente a equidade entre gêneros) e a produção de dados para políticas baseadas em evidência. Em um contexto em que apenas 2,3% do financiamento climático global tem como principal objetivo apoiar a igualdade de gênero, eventos promovidos pela Presidência da COP 28 refletiram demandas do movimento feminista e climático de considerar a perspectiva de gênero nos planejamentos e orçamentos das políticas e práticas de transições para economias de baixo carbono.

Ao longo deste artigo, pretendo transportar o leitor para dentro das dinâmicas de negociação da COP 28. Discutirei os destaques do que foi negociado e do texto de decisão da conferência. Além disso, pontuarei algumas expectativas e a atuação de países e blocos regionais nas negociações, a fim de salientar os desafios e progressos na busca por políticas climáticas mais inclusivas e equitativas.

O processo das negociações

Nas Conferências das Partes, os países (ou as “partes”) que assinaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), se reúnem anualmente para discutir e tomar decisões sobre medidas de combate às mudanças climáticas. Não há uma votação formal e todas as tomadas de decisão são realizadas por consenso. No âmbito do direito internacional, a definição de "consenso" não é explícita. Logo, são cada vez mais frequentes na COP decisões que são tomadas mesmo diante de objeções de alguma Parte, indicando que por vezes é a prerrogativa de quem preside a sessão de negociação analisar e determinar, em cada contexto, a existência de "consenso" entre as Partes.

Durante as negociações da COP 28, cada palavra, vírgula e parágrafo foram intensamente debatidos para compor o documento final sobre Gênero e Mudança Climática. O processo operou sob a máxima da UNFCCC: "Nada está acordado até que tudo esteja acordado". Em vista disso, é um processo delicado acomodar as necessidades entre países que colocam sua política externa como feminista e países que se beneficiam da falta de progresso.

O fato é: o prazo para o documento de gênero e clima era o penúltimo dia da primeira semana de COP (5 de dezembro), de modo que a pressão temporal também se tornou uma estratégia política. Esse ano observei articulações de algumas Partes para obstruir propostas que avançariam mecanismos de colaboração mais específicos e a menção a grupos particularmente impactados pelas mudanças climáticas.

Países como a Rússia, a Mauritânia e a Arábia Saudita se opuseram a falar em dados desagregados por sexo e gênero, argumento que ambas as palavras seriam equivalentes, e resistiram a linguagens mais específicas sobre a abordagem de gênero no texto final. Também evitaram referências a grupos "marginalizados", já que se poderia pressupor a inclusão de grupos LGBTQIAPN+, o que seria “inviável politicamente” para tais países, assim como menção a comunidades locais e comunidades indígenas. A própria menção a direitos humanos e políticas com responsividade de gênero não foram acordadas entre as Partes e não integraram o texto final.

Ainda assim, as negociações nunca são sobre um único país. As decisões finais são sobre todo o mundo, literalmente. Porém, se um país se articula para bloquear avanços, não há avanço. Ou o progresso é consensual, ou não há progresso. Afinal, cada vez que um texto é publicado como decisão ele se torna “linguagem acordada”, indicando um novo ponto de partida comum para as negociações.

A atuação do Brasil

O Brasil lamentou o texto final, em especial sem a proposta brasileira de menções a comunidades indígenas e comunidades locais e, também, menções à responsividade de gênero. A diplomata brasileira Bruna Veríssimo, primeira ponto focal de gênero na UNFCCC para o Brasil, citou em sua fala em plenário que não houve o avanço necessário e que as próximas sessões do Corpo Subsidiário de Implementação (SBI), em Bonn em 2024, serão decisivas para o futuro das discussões da temática.

O Brasil esteve ativamente presente nas discussões e articulações com outras delegações e pressionou para que relatórios enviados pelas Partes após 31 de maio também fossem considerados para a revisão do GAP, em decorrência da coleta de dados de gênero e clima liderada pelo Ministério das Mulheres.

O que foi deixado de lado na decisão sobre gênero e mudança climática

Ao longo de 4 dias de trabalho, o texto foi se esvaziando. Dos 13 parágrafos operativos propostos inicialmente pela presidência da sessão, foram mantidos na decisão apenas 4. A situação do texto final foi dramática de modo que membros do Secretariado demonstraram seu descontentamento colocando que era “altamente incomum” que um texto de decisão das Partes não fizesse sequer menção aos relatórios do Secretariado sobre a temática.

As negociações necessitaram particularmente de coordenação entre a Federação Rússia e a Arábia Saudita em contraste com os blocos da União Europeia, ABU (Argentina, Brasil e Uruguai) e AILAC (Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru e Chile). Nos momentos finais, existiram 2 principais reações. Uma foi de descontentamento declarado pelos parágrafos que ficaram de fora, e a outra foi de indicações de inflexão de modo que essa seria a única opção para que houvesse um texto acordado sobre a temática. Desse modo, ao fim houve uma decisão e foram colocados os prazos e um workshop necessários para manter a revisão e a atualização do GAP nos trilhos.

Ao analisar o texto proposto pela mesa que estava sendo negociado um dia antes do encerramento das discussões e comparando-o com a decisão final, observa-se que outras sinalizações relevantes para a temática ficaram de fora, como:

  • Financiamento climático responsivo a gênero e menções específicas sobre a importância de envolver mulheres indígenas e mulheres de comunidades locais, garantindo seus acessos a tais finanças;
  • Linguagem sobre desenvolver mecanismos e fortalecer a capacidade para coletar e gerenciar sistematicamente dados de gênero e orçamento climático;
  • Observações sobre a inclusão de indicadores e dados desagregados por sexo e gênero nos quadros de monitoramento e avaliação e em trabalhos técnicos das Partes no contexto de políticas e ações climáticas;
  • Encorajamento para as Partes integrarem uma perspectiva de gênero nas contribuições determinadas nacionalmente (NDC, a sigla em inglês), estratégias de desenvolvimento de baixa emissão de longo prazo e planos nacionais de adaptação (NAP, a sigla em inglês);

Os próximos passos e as expectativas para 2024

O Peru, em nome do bloco AILAC, e o Brasil sinalizaram em seu discurso final que, apesar de descontentes com o texto final, irão trabalhar para que o que ficou de fora seja integrado nas discussões em 2024. Para o ano que vem, podemos esperar uma dinâmica de muita colaboração e protagonismo latino-americano para a revisão do Plano de Ação de Gênero. Ainda assim, tão importante quanto esse processo serão as negociações de cada vírgula da atualização do GAP, a ser finalizada na COP 29, no Azerbaijão. Afinal, a COP não é uma coletiva de imprensa ou um trade show, mas sim um processo de negociação internacional cujos documentos de decisão norteiam as políticas globais do clima, direcionando recursos e investimentos de modo a limitar ou amplificar o acesso os direitos e proteções sociais em contextos de mudança do clima.

Fontes

PATEL, S.; PLUTSHACK, V.; KAJUMBA, T. C.; DEL PILAR LOPEZ URIBE, M.; KRISHNAPRIYA, P. P. Gender, climate finance and inclusive low-carbon transitions. IIED, 2023.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (UNDP). Gender, adaptation and disaster risk reduction. 2016. Disponível aqui. [Acesso em: 21 dez. 2023].

Sobre a autora:

Helena Branco é Jovem Embaixadora pelo Clima na Operação COP (The Climate Reality Project Brasil e The Climate Reality Project América Latina), colaboradora de conteúdos para a organização Serenas e estudante de Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC.

Sobre a Serenas:

Organização suprapartidária e sem fins lucrativos, fundada por ex-alunas da FGV, que atua para prevenir as violências contra meninas e mulheres no Brasil, através da qualificação de agentes públicos e construção de políticas educacionais antissexistas e voltadas à prevenção de violências.

Sobre a Operação COP:

Iniciativa do The Climate Reality Brasil Project, representado no Brasil pelo Centro Brasil no Clima, focada em capacitar jovens líderes brasileiros em negociações climáticas internacionais.

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

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