Hesaú Rômulo

 

A volatilidade do cenário político brasileiro é o maior Calcanhar de Aquiles para aqueles que ousam fazer análise de conjuntura. Partindo deste pressuposto, tento aqui rascunhar um esboço do que aconteceu exatamente um mês após a saída de Flávio Dino da política maranhense.

Dino assumiu a cadeira no STF em 22 de fevereiro de 2024 e de lá para cá aconteceu o que já se desenhava desde o começo do ano: um embaralhamento das forças que comandam o estado, em especial movimentações importantes no executivo e no legislativo subnacional. As leituras que tive acesso até o momento não deram conta do cenário e por esta razão urge a tentativa de elucidar os prováveis contextos que se apresentam no horizonte para o Maranhão.

A coalizão governamental a partir do executivo, comandado por Carlos Brandão (PSB), começa a dar sinais esperados de instabilidade, haja vista a amplitude de partidos e matizes ideológicas que a constituem. Brandão compôs um governo apoiado em algumas premissas básicas: 1) estímulo ao que ele e seus assessores chamam de municipalismo; 2) aposta na costura política tradicional, na expectativa de estabelecer uma distância segura do seu antecessor.

No legislativo, desde 2023 Brandão investiu em um parlamento paroquial, praticamente liquidando dissonâncias. No entanto, o governador viu tudo mudar nos últimos trinta dias. A disputa pela vaga de conselheiro do Tribunal de Contas do Estado foi o anúncio de uma lenta e gradual alteração no quadro do estado, que testemunhou, na aposentadoria política de Flávio Dino, uma incerteza considerável sobre o espólio do ex-governador e agora ministro da suprema corte.

A linha sucessória, pela formalidade do cargo e predileção de Dino, reside hoje nas mãos de Felipe Camarão (PT), vice-governador do estado e, também, secretário de educação. Camarão não teve vida fácil nessa transição e espera tempos ainda mais conturbados, tendo em vista que provavelmente será o responsável por fazer a interlocução entre facções da base governista e o Palácio dos Leões (sede do executivo no Maranhão). Nas últimas semanas, teve de lidar com diversos “incêndios”. Ao se colocar na função de mediador, Camarão atrai para si uma responsabilidade hercúlea. Os riscos e benefícios desta missão serão avaliados a médio e longo prazo, principalmente com a contagem regressiva de 2026 no horizonte.

O relógio segue implacável não só para o executivo, mas também para o legislativo. O parlamento maranhense vive um começo intenso de legislatura, com alguns embates e muitos aspectos que merecem atenção. O estado não conseguiu nos últimos anos consolidar lideranças a partir do fortalecimento dos partidos, seja na formação de quadros ou na renovação destes. A partir deste fato, ambos os lados do espectro político carecem de figuras que estejam vinculadas organicamente seja à esquerda ou à direita. Isto abre margem para que novos atores surjam, tentando capturar um eleitorado mais alinhado ideologicamente. Essa é uma trincheira que se reflete na Assembleia Legislativa Estadual.

Alguns pontos curiosos marcam esta transição. O novo líder do governo no parlamento é o deputado Neto Evangelista (União Brasil). Orador de primeira linha, Evangelista é detentor de boa articulação política e tem bom trânsito entre os pares. O que chama atenção é que o deputado não apoiou a chapa de Brandão em 2022, declarando apoio explícito ao senador Weverton Rocha (PDT), contrário ao projeto vitorioso. Além disso, Neto Evangelista carrega uma missão não tão simples assim, haja vista que tem se formado um bloco coeso dentro da Assembleia, composto pelos deputados Carlos Lula (PSB), Júlio Mendonça (PCdoB), Rodrigo Lago (PCdoB) e Othelino Neto (PCdoB).

O bloco associado a Flávio Dino hoje desenha o que nomenclaturo aqui de “apoio crítico” ao executivo estadual, compondo a base do governador, mas dando sinais de que há divergências programáticas tanto na forma como no conteúdo da coalizão liderada por Brandão. Um exemplo disso foi o recente embate entre Lago, que subiu à tribuna para cobrar as indicações feitas pelo governador em favor da deputada de extrema-direita Mical Damasceno (PSD). Filha de pastor, neopentecostal fervorosa e defensora dos atos antidemocráticos do 8 de janeiro, a deputada acumula em sua cota até mesmo a nomeação de um secretário de estado. Trocando em miúdos, a linha de Lago é razoável: a de que um governador eleito com o apoio de Dino e Lula não poderia conceder privilégios a setores abertamente antipetistas. Outro exemplo recente foi o próprio líder do governo, Neto Evangelista, aprovando na Comissão de Constituição e Justiça, presidida por ele, uma medalha de honra ao mérito a Michelle Bolsonaro. São sinais de que o Maranhão não está isento da polarização acirrada que afeta o Brasil como um tudo.

São corriqueiras as falas de Damasceno que vociferam o jargão bolsonarista contra o presidente da república. Neste meio tempo, Carlos Lula é um dos deputados que, junto a Othelino Neto, tentam tensionar o projeto de Brandão mais à esquerda. Esta tarefa não é simples, tanto pela composição heterogênea do governo como pelo apreço do mandatário do Palácio dos Leões por um tipo mais conservador de alianças políticas. Importante sublinhar que já existem diversos acenos simbólicos do governo em relação a frações do sarneísmo no Maranhão, força tão combatida por Dino ao longo das últimas três eleições em que rivalizou com Roseana Sarney e demais nomes do grupo.

Estas indefinições em tese privilegiam o atual prefeito da capital, Eduardo Braide (PSD), que tenta manter-se imune os humores instáveis da política local.  Braide busca a reeleição, na expectativa de utilizar novamente a estratégia de quatro anos antes. Apesar de favorito, não deve ter vida fácil, a depender do tipo de articulação que será feita pelas lideranças que almejam destroná-lo. Há alguns meses, o nome mais provável para levar a eleição para o segundo turno era o do deputado federal Duarte Júnior (PSB), que inclusive perdeu para Braide em 2020, numa eleição atípica, atravessada pela pandemia da Covid-19. Hoje, o consenso em torno de um prefeiturável depende de fatores mais complicados e principalmente de uma costura política que envolve um apaziguamento da base aliada.

Apaziguamento talvez seja a palavra-chave para o momento. Isto porque Duarte Júnior e Felipe Camarão são os que mais sofrem com a ausência de Dino da política maranhense, tentando encontrar fôlego para ganhar confiança de Brandão. Contudo, demonstrar virtudes distintas, na ânsia de concentrar forças em uma comunicação com o eleitorado lulista requer um esforço árduo. Ainda é cedo para qualquer aposta mais assertiva, mas não seria incomum que houvesse novamente uma fratura no campo governista em torno de uma unanimidade para a disputa da prefeitura da capital, tal como ocorreu quatro anos antes.

Há tempos o cenário político não se encontrava tão indefinido, com tantas variáveis a serem ponderadas. De um lado uma coalizão heterodoxa e que vê sua hegemonia ameaçada. De outro lado um grupo numericamente pequeno, mas com um potencial de fazer muito barulho em uma eventual oposição. Algumas perguntas preliminares são necessárias: a quem interessa uma oposição neste momento no Maranhão? O quão prejudicial seria para o governo que uma oposição se formasse tão cedo? São duas questões que vão ressoar nos ouvidos dos interlocutores do executivo e legislativo ao longo do ano e que talvez só as eleições municipais ajudem a definir melhor o cenário.

De qualquer forma, não vejo no horizonte próximo um rompimento na base aliada. Apostaria em uma recomposição do governo, que sofre pressões que não podem ser ignoradas. Em uma frente, pressões internas vindas de deputados como Lago e Lula, que fizeram parte da administração de Dino e já se provaram combativos. Em outra frente, pressões externas, vindas da coalizão nacional, que pode enquadrar Brandão para uma postura mais alinhada com aquilo que a chapa PT-PSB tem apresentado nas demais unidades federativas.

Importante ressaltar que o Maranhão vive um alinhamento significativo com o governo federal, algo impensável no último ciclo comandado por Bolsonaro. Cabe a Brandão avaliar o tamanho das disputas que ele deve ou que ele pode comprar, em que pese a avaliação do seu governo e as dificuldades de gestão apresentadas até aqui.

Em geral, momentos de transição são indigestos e exigem dos atores políticos uma dose de cautela. Pensando nisso, trago uma rápida anedota geográfica para encerrar esta análise: Em São Luís é comum que os jornais publiquem em seus periódicos a tábua de marés, uma informação de utilidade pública para viajantes, pescadores, turistas, vendedores e funcionários públicos. Isto porque desde o Século XVII aventureiros ousam navegar pelo Golfão Maranhense. Nesta área existe o famigerado Canal do Boqueirão, reconhecido por sua amplitude de maré, que não só encalha como naufraga as mais diversas embarcações há pelo menos quatrocentos anos. Há que se ter muita parcimônia e alguma inteligência para saber a hora da vazante e a da enchente. O período da baixa-mar impõe uma certa paciência ao velejador: há que se esperar a maré esvaziar por completo. Por outro lado, a preamar anuncia o momento de içar velas e partir em direção ao Atlântico. Em qual período da política estamos? O tempo em breve trará as respostas adequadas.

Sobre o autor:

Hesaú Rômulo é Cientista Político. Professor de Teoria Política na Universidade Federal do Tocantins. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

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