Felipe Fernandes Pinheiro

 

Pensar um novo tempo, muitas vezes, é um exercício de revisitação aos eventos do passado. O desejo de repetição e a impossibilidade de reviver cada experiência uma segunda vez compromete a linearidade do tempo humano e nos apresenta a realidade do passado maquiada com as tonalidades do presente.

Nos contornos modernos, predominam duas visões de mundo distintas. De um lado, há quem enxergue a realidade de maneira economicista, prestigiando valores individuais e econômicos e enaltecendo critérios como a produtividade, o pragmatismo e o melhor custo-benefício, aplicando esses valores, inclusive, nas relações sociais. De outro, se pensa o mundo a partir de valores coletivos e sociais, tendo a dignidade da pessoa humana como ponto de partida e entendendo que o progresso só existe quando se é capaz de aliar o crescimento econômico ao desenvolvimento social.

Essa disputa ideológica exerce sua influência nas relações de trabalho, que antes mesmo de formarem um vínculo jurídico obrigacional, são relações sociais. Nesse campo, há quem considere o trabalho um bem qualquer a ser precificado e colocado à serviço da livre iniciativa, encampando pautas de flexibilização das normas trabalhistas; e, do outro lado, há quem o analise à luz de seu valor social e compreenda sua regulamentação como uma forma de efetivar a dignidade humana em um modo de produção pautado na exploração do trabalho alheio.

Até aqui, não há nada de original nessa disputa. Até a moderna globalização se apresenta com os mesmo contornos do velho e surrado imperialismo, um embate ora franco, ora disfarçado, entre as classes subordinantes e as subordinadas. A novidade é que, dessa vez, seja por alienação ou por conveniência, há uma reverência dos subordinados em relação a seus algozes, de forma que mesmo aqueles que alienam seu trabalho ao custo de um sacrifício diário compactuam com os valores e visão de mundo de quem os explora.

Afinal, por que as classes exploradas não rompem os laços com seus exploradores? Antonio Gramsci, intelectual italiano do final do século XIX, procurou explicar essa relação a partir do conceito de hegemonia.

A hegemonia é uma espécie de convencimento ideológico amplo por meio do qual os valores e ideais das classes subordinantes são afirmados, difundidos e compartilhados pelas classes subordinadas. O que ocorre é um processo de hegemonização de toda a sociedade, de forma que mesmo aqueles que pertencem à classe subordinada vinculam-se a uma determinada visão de mundo perpetrada pela classe subordinante.

Esse processo de hegemonia ocorre pelo equilíbrio entre o uso da força e do convencimento. Para tanto, o Estado e o direito, conjunto que ampara estruturalmente as sociedades modernas, atuam de forma repressiva e educadora, punindo e excluindo pessoas ou grupos que praticam determinado comportamento indesejado pelos valores hegemônicos, ao mesmo tempo em que buscam aliciar todas as classes por meio de seu aparato burocrático, apoiando-se na legitimidade e racionalidade do direito para justificar a dominação das classes subordinadas.

Ao lado do Estado, a sociedade civil também desempenha papel importante na formação e manutenção da hegemonia. Composta por organizações responsáveis pela disseminação dos valores dominantes, como a Igreja, as organizações profissionais e entidades de classe, as escolas, instituições de ensino superior, os meios de comunicação em massa, as organizações artísticas, culturais e intelectuais, sua atuação está localizada no campo do convencimento, da construção ideológica. Para tanto, utilizam sua ampla rede de influência para difundir uma determinada visão de mundo.

A atuação conjunta entre Estado e sociedade civil, ou “Estado amplo”, assegura à classe subordinante a difusão de seus valores e ideologia em todo o aparato burocrático do Estado e a nível cultural, artístico e social. A hegemonia, portanto, se apoia no uso da força – jurídica do Estado e coercitiva das instituições – e do consenso dos dominados, que passam a compartilhar os mesmos valores que seus exploradores e a desejar aqueles mesmos hábitos e costumes, ainda que, muitas vezes, lhes sejam desfavoráveis.

Essa lógica de dominação transparece nas relações de trabalho. Seja pelos profissionais “autônomos” que desprezam o vínculo empregatício, pelos novos “empresários”, cujo controle do modo de produção consiste no gerenciamento do suor do próprio corpo, ou pela criação de uma classe de trabalhadores “hipersuficientes”, que olham de cima para seus semelhantes. Isso sem falar dos mecanismos jurídicos que premiam os empregados pelo seu excesso de produtividade e os mecanismos sociais que vangloriam o “workaholic” e a autoexploração no trabalho.

A relação social de trabalho ditada pela hegemonia levou a um sistema de segregação da classe trabalhadora, que não mais se identifica entre si, mas, ao revés, desenvolve afeto e admiração por aqueles que os subordinam.

Se no início do século passado havia maior facilidade em identificar os indivíduos pertencentes à classe trabalhadora, o aprimoramento do modelo capitalista e a complexidade da sociedade moderna trouxe novas formas de trabalho e diferentes perfis de trabalhadores, rompendo com os laços capazes de unir, ideologicamente, essa classe social.

Isso explica – ao menos em parte – o crescente desprestígio do direito do trabalho, das normas trabalhistas, dos movimentos sindicais e até mesmo da Justiça do Trabalho. Em uma sociedade viril, em que ser trabalhador, especialmente o empregado, é sinal de fragilidade, mais vale se disfarçar de empresário – ainda que de si mesmo – do que assumir suas responsabilidades perante sua própria classe.

Entretanto, não são poucos os que percebem que, apesar de todas as particularidades e diferenças que existem entre as pessoas, tanto quem trabalha no campo quanto quem negocia as commodities no mercado financeiro compartilham entre si o fato de serem trabalhadores. Muitas vezes, esse elo é ainda maior, na medida em que ambos atuam sob o mesmo vínculo institucional de uma relação de emprego.

Vale dizer, ainda que tenham diferentes cores, pertençam a classes sociais distintas, adorem outros deuses e residam em locais diferentes, todos os trabalhadores compartilham entre si o fato de viverem da alienação de sua própria força de trabalho. É na heterogenia que a classe trabalhadora ganha sua força.

A retomada da pauta em favor dos direitos sociais, especialmente da proteção do trabalhador no âmbito das relações de trabalho, depende da formação de consciência de classe e do desenvolvimento de uma nova ideologia do trabalho, amparada na identificação de uma essência, a substância comum que define o trabalhador moderno.

Sobre o autor:

Felipe Fernandes Pinheiro é advogado e pesquisador. Pós-graduado em Direito do Trabalho (FGV-SP) e mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP).

 

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