Dalson Figueiredo 

Rafael Cardoso Sampaio

 

Se você está lendo este artigo, existe uma grande chance de a metodologia de pesquisa ser, para usar o termo cunhado por Soares (2005), o seu calcanhar de Aquiles. Esse diagnóstico é especialmente preciso caso sua formação - graduação ou pós-graduação - tenha sido realizada nas Humanidades. Todo mundo sabe, mas não custa repetir: quem foi para cursos como Antropologia, Ciência Política, Comunicação, Sociologia, Psicologia, Serviço Social, - só para citar alguns, não tinha, em média, tanta intimidade com a Matemática. Matrizes, um horror. Álgebra, um trauma. Todas aquelas equações, que mais parecem ter saído de um filme de ficção científica, não foram suficientes para conquistar a sua preferência para um curso de Exatas, como se costuma dizer no Ensino Médio.

E é aí que vem o primeiro grande engano: você entra na graduação imaginando que nunca mais verá números na vida, porém como nos filmes de terror, eles sempre voltam para te assombrar. Seja em disciplinas de Estatística, métodos quantitativos ou mesmo de metodologia! Você até tenta correr para os métodos qualitativos, porém aprende rápido que não se trata apenas da ausência de quantificações e que você precisará aplicar rigor em suas análises. Sem mencionar a trabalheira que é coletar dados, resguardar os participantes e não enviesar sobremaneira sua análise. Na primeira transcrição de uma entrevista de duas horas, você aprende que existe método na produção das evidências e que essa coisa chamada de ciência exige o cumprimento de regras rígidas de estruturação do pensamento.

Perto do final do curso, nos preparativos do TCC e/ou nas conjecturas sobre fazer ou não pós-graduação, você nota que ou não teve um treinamento metodológico adequado (ou que não prestou atenção o suficiente!)! Mesmo o mercado de trabalho começa a valorizar (senão exigir) hard skills relacionadas à pesquisa, como saber montar e limpar banco de dados, raspar, minerar e analisar grandes quantidades de informações desestruturadas ou ainda conduzir entrevistas e grupos focais. E novamente você está em apuros. Ora, bem-vindos e bem-vindas ao clube!

Muitos discentes devem ter se identificado com a parte inicial deste texto, porém existe um outro lado importante: os docentes. Ministrar disciplinas metodológicas frequentemente é um fardo para os professores. Precisamos falar sobre isso. Inicialmente, existe um grande peso em tais disciplinas, pois elas precisam preparar os estudantes para desenvolver seus futuros projetos de pesquisa. Então, geralmente você não apenas ensina metodologia, mas também lida diretamente com os projetos dos alunos. Pela nossa experiência pedagógica e a partir de conversas informais com outros colegas, identificamos ainda uma forte heterogeneidade das turmas, o que dificulta sobremaneira a tarefa do professor/professora responsável pela disciplina.  Afinal, como se ensina regressão linear para alguém que não sabe diferenciar variáveis quantitativas e qualitativas, por exemplo? Além disso, dado o quadro reduzido em diversos departamentos, os docentes que costumam ministrar as disciplinas metodológicas geralmente têm pouco tempo para ofertar cursos optativos mais próximos de seus interesses de pesquisa.

O estudo de Barberia et. al. (2014) evidenciou isso na Ciência Política. Na maior parte dos PPGs da área, você acaba tendo os “professores metodólogos”, que frequentemente assumem todas as disciplinas de metodologia ao longo dos anos, notadamente em programas menores. Isso tende a ter um efeito negativo na capacidade desses professores de captarem alunos e desenvolverem outras pesquisas. Isso sem mencionar, que se torna enfadonho dar as mesmas disciplinas repetidamente ao longo dos anos.

Por outro lado, quando outros professores se arriscam (ou são empurrados) a ministrar tais disciplinas, muitas vezes se sentem inseguros, especialmente quando a ideia é apresentar múltiplas técnicas. É bastante difícil preparar uma disciplina nova, sobre inúmeras abordagens metodológicas e ainda garantir que haja textos atualizados. Muitas vezes os discentes também não têm leitura avançada em outras línguas, como o inglês, o que dificulta ainda mais preparar as aulas.

E, claro, temos alunos e alunas que gostam de estatística, adoram métodos qualitativos rigorosos e estão ávidos por aprender mais. E, também, temos professores e professoras que amam dar disciplinas metodológicas e ver o crescimento dos discentes.

Pensando em todos esses diferentes perfis, reconhecemos que navegar pelo mundo complexo da pesquisa pode ser um desafio e tanto. Foi pensando nisso que criamos o T3MP (Trabalhos tutoriais sobre Técnicas e Métodos de Pesquisa). Uma grande curadoria de textos acadêmicos focados em ensinar a aplicar diferentes métodos e técnicas de pesquisa. Dessa forma, optamos especialmente por textos tutoriais que realmente ensinam diretamente o que fazer, mas também incluímos textos que fazem discussões metodológicas importantes a serem consideradas na aplicação. Considerando-se que o público de tais textos frequentemente serão alunos e alunas de graduação e de mestrado, também incluímos os principais materiais tutoriais, quando disponíveis, em português.

Partimos também da visão de que o bom cientista é aquele que escolhe o método de acordo com a pergunta de pesquisa e o objeto a ser estudado. Enquanto reconhecemos que é bastante difícil, senão impossível, ter esse superespecialista em todas as técnicas, acreditamos que é importante estruturar repositório da forma mais abrangente possível, de modo a representar a pluralidade metodológica das Ciências Sociais. Dessa forma, nossa curadoria inclui métodos quantitativos, métodos qualitativos e, claro, material sobre métodos mistos.

Considerando a última atualização, o T3MP conta com 430 materiais acadêmicos divididos em 65 diferentes temas. Para facilitar, criamos uma lista que compila o título, o nome do arquivo, o tema e o idioma de cada produção com o objetivo de facilitar buscas específicas. Neste momento inicial, limitamos cada pasta até 10 trabalhos, buscando evitar um excesso de textos iniciais e voltar ao problema de o estudante não saber por onde começar. Além disso, buscamos reconhecer os movimentos mais recentes da ciência, que é cada vez mais exigente em termos de replicabilidade, replicação e transparência da pesquisa. A ciência se reconhece cada vez mais como um movimento público e coletivo, que deve estar sempre aberto a críticas e melhorias.

Finalmente, o repositório busca ser atualizado ao contexto atual. Isso significa reconhecer que tanto a academia quanto o mercado estão cada vez mais exigindo conhecimentos para trabalhar com dados de forma mais ágil e robusta, o que frequentemente demanda conhecimentos em diferentes softwares de pesquisa, mais notadamente em linguagens de programação, como Python e R, para métodos quantitativos. Por sua vez, a pandemia de Covid 19 trouxe desafios e possibilidades para a pesquisa qualitativa (Tremblay et al, 2021), consolidando o movimento de empregar técnicas de coleta de dados, como entrevistas e grupos focais, por meios online. E, em 2023, as inteligências artificiais generativas, como o ChatGPT e Bard, abalaram diversos campos pelo globo, incluindo a pesquisa acadêmica. Tais ferramentas vão ter impacto direto na busca, leitura, escrita e são capazes de facilitar a programação e mesmo análise de dados de diferentes formas. Com o objetivo de facilitar a utilização do repositório em cursos de graduação, mais de 50% do conteúdo da curadoria foi escrito em português.

No caso dos métodos quantitativos, a leitura vai encontrar sugestões de leitura sobre amostragem, análise de cluster, análise de correspondência, análise fatorial, análise espacial, análise de sobrevivência, avaliação de impacto, regressão linear, regressão logística, regressão de painel, modelos de equações estruturais, entre outros.

No caso dos métodos qualitativos, optamos por incluir técnicas de coleta de dados, como entrevistas, grupos focais, observação participante, técnicas de análise de dados, como análise documental, temática, de conteúdo, de discurso, e grounded theory. Apesar de ser um tema extremamente novo, já incluímos uma pasta sobre uso de inteligência artificial para auxiliar a análise qualitativa.  Por sermos professores atuando na Ciência Política, incluímos as técnicas qualitativas mais diretamente vinculadas à geração de relações causais, a saber Qualitative Comparative Analysis e Process Tracing.

Consideramos temas transversais aqueles que não necessariamente podem ser enquadrados como quanti ou quali, incluindo bibliometria, desenho de pesquisa, epistemologia (em Ciência Política), epistemologia feminista*, escrita científica, métodos digitais, métodos mistos, revisões sistemáticas de literatura.

Então, como dito, o repositório objetiva facilitar a vida de estudantes e professores. Ser um mapa inicial do caminho de diferentes métodos e técnicas de pesquisa. Foco no inicial. Ninguém aprende adequadamente qualquer técnica apenas lendo 10 materiais. É preciso complementar esse conteúdo e provavelmente reforçar esse conhecimento através de outros cursos e muito prática. Importante reportar: uma limitação deste repositório é o fato de não conter livros e capítulos de livros que não estão disponíveis gratuitamente na internet, que usualmente são fontes importantes de textos tutoriais.

Finalmente, optamos por lançar o repositório agora, mas estamos abertos a novas contribuições, contribuidores e especialmente contribuidoras! Mandem-nos e-mail e vamos expandir melhorar ainda mais essa coleção!

Então, vamos ao trabalho. Desta vez, sem receios!

Referências

BARBERIA, L. G.; DE GODOY, S. R.; BARBOZA, D. P. Novas perspectivas sobre o ‘calcanhar metodológico’: o ensino de métodos de pesquisa em Ciência Política no Brasil. Revista Teoria & Sociedade, v. 22, n. 02, p. 156-184, 2014.

SOARES, Gláucio Ary Dillon. O calcanhar metodológico da ciência política no Brasil. 2005. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 48, p. 27-52, 2005.

TREMBLAY, Stephanie et al. Conducting qualitative research to respond to COVID-19 challenges: Reflections for the present and beyond. International Journal of Qualitative Methods, v. 20, p. 16094069211009679, 2021.

* Agradecemos à professora Rayza Sarmento (UFPA) pela elaboração da pasta sobre epistemologia feminista

Sobre os autores:

Dalson Figueiredo é Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences a visiting scholar na Universidade de Oxford - 2021/2022 - E-mail: dalson.figueiredo@ufpe.br

Rafael Cardoso Sampaio é Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenador do grupo de Pesquisa Comunicação Política e Democracia Digital (COMPADD). E-mail: rafael.sampaio@ufpr.br

 

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