Ian Batista

 

No super-ano eleitoral de 2024 a América Latina assistirá a seis pleitos presidenciais. Nas últimas 22 eleições para presidente na região desde 2018, 20 deram a vitória à oposição. Neste ano, contudo, a tendência é de que os incumbentes contra-ataquem. Três dos seis candidatos da situação que irão as urnas esse ano são favoritos. Esses são Nayib Bukele em El Salvador, Claudia Sheinbaum (sucessora do presidente Manuel Lopez Obrador) no México e Luis Abinader na República Dominicana. Existe ainda o caso particular venezuelano, em que Nicolás Maduro deverá ser reeleito em uma eleição que ainda não foi convocada. Nem todos esses pleitos serão disputas limpas onde a população poderá escolher seus candidatos livremente. Na América Latina, o nível de integridade eleitoral varia de Uruguai a Venezuela.

Ainda que muito possa ser questionado sobre a qualidade das democracias latino-americanas, a região possui bom histórico de eleições limpas. De fato, uma contribuição legitimamente latino-americana para as democracias constitucionais que se difundem pelo globo no século XX são organismos eleitorais independentes (Lehoucq, 2002). Os primeiros casos de organismos de administração eleitoral independentes do governo surgiram no Chile (1925), na Costa Rica (1949) e no Uruguai (1952), posteriormente tornando-se o modelo de administração eleitoral a ser seguido no mundo todo. A região possui ainda a terceira melhor média regional no indicador de eleições livres e justas do V-Dem, atrás somente da Europa Ocidental e América do Norte (EUA e Canadá). Pela região encontramos ainda exemplos de organismos eleitorais que são referências internacionais de profissionalismo, capacidade e integridade, como o Instituto Nacional Eleitoral (INE) no México, com destacado papel na democratização daquele país entre a década de 1990 e os anos 2000, e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no Brasil, responsável pelo maior sistema de voto eletrônico autogerido do mundo.

Nos últimos anos, o debate acadêmico e dos profissionais que atuam na administração e cooperação eleitoral tem considerado a integridade eleitoral como um ciclo (Pippa, Frank e Coma, 2013). Para além do dia da votação, a eleição é composta por distintas etapas que se complementam e que necessitam atender a padrões internacionais de lisura e integridade. Esse ciclo engloba a legislação eleitoral, o registro de eleitores, as candidaturas e campanhas, as finanças, a administração eleitoral, dentre outros elementos. Não basta que o dia da eleição seja bem-organizado e pacífico, mas as regras que regem a eleição devem ser justas e igualmente aplicadas, as distintas forças políticas devem estar aptas a competir em pé de igualdade, a administração eleitoral deve ser neutra e assim por diante.

A Figura abaixo apresenta indicadores de integridade para as distintas etapas do ciclo eleitoral tal qual compreendido e mensurado pelo Electoral Integrity Project, que realiza pesquisa anual com especialistas do mundo todo sobre a qualidade dos pleitos. Na Figura estão os seis países latino-americanos com eleições presidenciais este ano, e para cada país são apresentados os valores de sua última eleição comparados com a média da região.

A integridade do ciclo eleitoral dos seis países latino-americanos com eleições presidenciais em 2024

mceclip0-9125112a71c868a31f761ab79bff8e19.jpgFonte: o autor, com dados do Electoral Integrity Project.

Observando a figura fica clara a diferença de qualidade das eleições entre países como o Uruguai e a Venezuela, por exemplo. O presidente uruguaio Lacalle Pou não poderá ser reeleito nas eleições de outubro, e as coalizões ainda realizarão eleições primárias em junho. Não existem favoritos despontando a essa altura do ano, mas desde já a expectativa é que novamente o processo eleitoral será respeitoso e democrático no paisito. Os indicadores do Uruguai estão todos acima da média da região, com destaque para o processo e a legislação eleitoral, e a aceitação e a apuração dos resultados. Os destaques negativos são os indicadores de finanças eleitorais, um ponto fraco regional, e o de ato de votação. Uma das causas desse último paradoxalmente advém do nível de cultura democrática no país, que permite que sejam adotados procedimentos que em outros lugares poderiam causar problemas e fogem de padrões internacionais. É o caso do sistema de “votos observados”, uma categoria de votação para pessoas fora de seus domicílios eleitorais, por exemplo, cujos votos ficam guardados para posterior avaliação e validação. 

Já a Venezuela apresenta todos seus indicadores abaixo da média regional. Na eleição presidencial prevista para o segundo semestre desse ano, mas ainda sem data marcada, os últimos acontecimentos no país distanciam qualquer expectativa que tinha sido nutrida pelas negociações entre governo e oposição, com mediação da Noruega e acompanhadas com interesse pelos EUA, para um pleito minimamente crível. O regime Madurista herdou diversas táticas de enviesamento das condições de disputa eleitoral do seu antecessor Hugo Chávez, o que explica que todas as etapas do ciclo pontuem tão baixo, mas tem inovado ao adotar inabilitações de candidaturas opositoras que ameaçam suas chances de vitória. Recentemente a suprema corte do país confirmou a inabilitação de Maria Corina Machado, eleita em primárias opositoras no último outubro com dois milhões de votos. O registro de eleitores desatualizado e a ingerência do governo na administração eleitoral são outros elementos que contribuem para a expectativa de uma eleição enviesada esse ano.  

A eleição em El Salvador também merece atenção no que diz respeito as condições sob as quais vão ocorrer. O extremamente popular Nayib Bukele atualmente controla os três poderes e garantiu que a suprema corte, toda indicada por ele, reinterpretasse a constituição para garantir que pudesse concorrer a reeleição. Também usufruindo de sua hegemonia institucional e popularidade, implementou uma reforma eleitoral que diminuiu o tamanho do congresso (de 84 legisladores para 60) e substituiu os 262 municípios do país por 44 distritos eleitorais, em um processo legislativo apressado, sem participação da oposição e que deve contribuir para sua consolidação no poder. Bukele dobrou as instituições salvadorenhas e enviesou as condições de disputa eleitoral a seu favor, e a expectativa para as eleições desse ano é a redução da pontuação, pelo menos, nos indicadores de legislação eleitoral, distritos eleitorais, candidaturas, processo eleitoral e mídia.

Manuel Lopez Obrador (conhecido também pela sigla AMLO) tentou processo parecido de debilitação das condições de disputa eleitoral no México durante seu mandato. Dois projetos de reforma do INE foram postos para votação, procedentes do Executivo. O primeiro não conseguiu a supermaioria suficiente, mas o segundo, chamado por AMLO de “plano B”, foi aprovado em votação acelerada. Segundo o governo a reforma economizaria 150 milhões de dólares por ano ao cortar o orçamento e 85% do pessoal do INE, mudando ainda a forma de nomeação dos conselheiros (de nomeados pelo legislativo para eleição direta) e reduzindo o escopo de atividades realizada pela instituição. A reforma eleitoral também propôs reduzir o número de deputados de 500 para 300 e mudar o sistema para elegê-los. A suprema corte posteriormente declarou a reforma inconstitucional, graças ao período curto de discussão do projeto no Senado.

Como já mencionado, o INE é um organismo eleitoral reconhecido e elogiado por especialistas eleitorais de todo o mundo. A tentativa de AMLO de reduzir as capacidades do INE provocou protestos em defesa desta instituição por todo o país, demonstrando que uma parte considerável da sociedade civil também reconhece a importância do INE para a democracia do México. Uma das questões em aberto para o pleito mexicano desse ano é saber em que medida a sucessora de AMLO, a ex-prefeita da Cidade do México Claudia Sheinbaum, dará continuidade as pautas e discursos mais populistas do então presidente, e principalmente como ela se relacionará com o INE durante a campanha.

Eleições são muitas vezes o principal contato da população em geral com os procedimentos democráticos. Que os eleitores sejam livres para escolher seus representantes é condição necessária para que esse processo seja legítimo. A América Latina possuiu tradição em matéria eleitoral, mas assim como a democracia, eleições limpas não estão dadas e devem ser cuidadas e protegidas a cada ciclo eleitoral. A população é parte interessada e fundamental no processo de garantias de condições eleitorais. Estejamos atentos e alertas.

Sobre o autor:

Ian Batista é assistente de projetos no Carter Center e Junior Fellow do Electoral Integrity Project. Possui Doutorado em Ciência Política pela UFPE.

 

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