Jorge Alexandre Neves

Dalson Figueiredo

 

“Perigo está em ser conduzido por alguém que teve empurrãozinho em quase tudo na vida”. Esse é o subtítulo do artigo de Michael França ao responder a coluna de Hélio Schwartsman na Folha de São Paulo intitulada “A Multiplicação das cotas”. Nesta comunicação, utilizamos recursos estatísticos elementares para examinar as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD – IBGE) e ver, por assim dizer, para onde os dados apontam. Afinal, políticas públicas devem ser ancoradas em evidências científicas. 

Vamos começar com uma constatação simples. É nos níveis ocupacionais mais elevados que a desigualdade racial se manifesta de forma mais significativa. Reflita aí: qual foi a última vez que você viu um juiz negro? E um neurocirurgião negro? Pois é. Este é um fenômeno bem conhecido por quem pesquisa a desigualdade racial no Brasil (Neves e Xavier, 2016). Anote aí então a primeira evidência científica sobre o tema: quanto maior o nível socioeconômico de uma ocupação ou cargo, maior a desigualdade racial.

Não é à toa que as cotas raciais surgiram inicialmente para lidar com o acesso dos negros aos níveis mais elevados do sistema educacional, particularmente, o ensino superior. Quanto à educação, já está bem documentado o efeito benéfico desse tipo de intervenção. Quanto ao mercado de trabalho e à estrutura ocupacional, todavia, precisamos de mais estudos. No último dia 15 de fevereiro, o colunista Hélio Schwartsman criticou, de forma leiga, as cotas raciais em concursos públicos. Aliás, o artigo começa com um parágrafo totalmente equivocado, carregado de preconceito e desinformação, que o próprio autor termina por desmentir. Nos EUA, por exemplo, existe uma cultura corporativa em que grandes empresas privadas adotam políticas próprias de ação afirmativa. Isso produziu uma elite profissional negra de tamanho bastante significativo, algo que ainda estamos longe de ter no Brasil. Por aqui, foi o setor público que alavancou as oportunidades ocupacionais de nível mais elevado para a população negra. Como a melhor evidência disponível indica, a democratização do acesso às oportunidades educacionais de nível mais elevado é fator necessário, mas insuficiente para a promoção da equidade racial. Assim sendo, além de cotas raciais, temos, sim, boas razões para incluir cotas no acesso ao emprego público no Brasil.

Para que estudemos de forma adequada a desigualdade salarial entre grupos raciais, é importante controlar, para usar o jargão estatístico, pela origem socioeconômica dos indivíduos adultos que estão no mercado de trabalho. O último banco de dados brasileiro que nos permite fazer esse tipo de análise é a PNAD-2014. Considerando então os indivíduos do sexo masculino de 25 a 65 anos de idade, observa-se que o diferencial líquido (após controlar por fatores de capital humano e de origem socioeconômica) dos salários de negros e brancos é de aproximadamente 20%. Ou seja, comparando pessoas com a mesma qualificação e origem socioeconômica semelhantes, indivíduos brancos têm um salário médio cerca de 20% maior do que os negros (pretos e pardos). Nos EUA, o artigo “Are Emily and Greg More Employable Than Lakisha and Jamal” ficou famoso ao demonstrar que pessoas com o nome branco recebem, em média, 50% a mais de retorno para entrevistas de emprego do que pessoas com nome tipicamente associados a negros, mesmo tendo a mesma qualificação, pasmem!

Mas voltemos ao Brasil. Nas ocupações de elite – aquelas com maiores escores no Índice Socioeconômico Internacional (ISEI) – maior é a desigualdade racial. Essas ocupações requerem elevados níveis educacionais ou ativos organizacionais (o exercício da autoridade, algo típico de ocupações gerenciais e de supervisão) e representam aproximadamente 20% da População Economicamente Ativa ocupada no Brasil (aqueles com percentil 80 ou mais no ISEI). No caso dessas ocupações de elite, a diferença salarial entre brancos e negros é 35% maior do que a média dos trabalhadores em geral, mesmo considerando o mesmo nível de capital humano e origem socioeconômica.

Utilizando-se os chamados Modelos Multiníveis (com indivíduos no primeiro nível e ocupações no segundo), observa-se que, embora seja nas ocupações com cargos mais altos que a desigualdade salarial entre negros e brancos é maior, o chamado “efeito composição” da raça interfere significativamente nessa desigualdade. Anote aí a segunda evidência científica sobre o tema: o aumento da proporção de negros em uma ocupação reduz a desigualdade salarial entre negros e brancos. Mais especificamente, a elevação de 10% na proporção de negros reduz em 1,5% a desigualdade salarial entre negros e brancos. Fazendo uma conta de padaria, se a participação de negros numa ocupação passar de 20% para 40%, veremos uma redução de 15% na desigualdade salarial entre as raças. Mas, por favor, não aceite nossos argumentos como verdadeiros. Vejamos o que dizem os dados. O Gráfico 1 ilustra a relação entre nível ocupacional (ISEI) e os rendimentos do trabalho na PNAD-2014.

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Vamos explicar. Olhe inicialmente para a figura do lado esquerdo. No eixo horizontal x, temos o nível ocupacional medido pelo ISEI. No eixo vertical y, temos o rendimento. A comparação foi realizada por grupo de ocupação considerando a prevalência de brancos ou negros em cada grupo (+ 50%). Observe que para os trabalhos em que a maioria é branca, os negros sempre recebem menos, independentemente do nível socioeconômico da profissão, e a diferença salarial cresce com a elevação do nível ocupacional. “Calma aí, professores! Eu faltei essa aula de Estatística”. Vamos novamente. O que estamos vendo é o seguinte: seja gari, seja neurocirurgião – se a maioria das pessoas ali ocupadas forem brancas – pessoas negras sempre recebem salários menores, além de que a diferença relativa (percentual) dentre brancos e negros será bem maior entre os neurocirurgiões do que entre os garis. Observe que as retas nunca se tocam e tendem a se afastar com a elevação do nível ocupacional!

Agora examine a figura do lado direito. Quando a ocupação é de maioria negra, o aumento do nível ocupacional produz uma maior equidade entre os rendimentos. Tecnicamente, isso se observa pela tendência de sobreposição das retas à medida em que o valor do ISEI cresce. Mas será que essas evidências são suficientes para convencer o Hélio Schwartsman? Vejamos outra forma de visualizar esse fenômeno. O Gráfico 2 ilustra a relação entre ISEI e rendimentos por grupo de raça.

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Para os brancos, tanto faz estar em uma ocupação majoritariamente branca ou não, o retorno é praticamente o mesmo (0,025 x 0,027). Por outro lado, o ganho salarial é significativamente menor quando uma pessoa negra está exercendo uma profissão tipicamente ocupada por pessoas brancas (0,022). Em um mercado de trabalho equitativo, a mesma insignificância que foi observada entre os brancos deveria ser verificada entre os negros.  Ou seja, o impacto da elevação do nível ocupacional sobre o salário (a inclinação da curva) é muito maior para os negros em “ocupações negras” do que para aqueles em “ocupações brancas” (0,033 versus 0,022). Vamos repetir para ninguém mais se confundir: o mesmo não se observa no caso dos que se declararam brancos. Entre estes últimos, praticamente não há diferença na inclinação das duas curvas. Isso mostra, portanto, que a elevação da presença de pessoas negras em ocupações de maior nível socioeconômico contribui para a redução da desigualdade entre negros e brancos ao longo do tempo, ao mudar a composição racial das ocupações de maior nível de status e de renda.

Essas evidências apontam que a melhor forma de combater a desigualdade racial no mercado de trabalho é justamente elevar a participação dos negros nas ocupações de nível socioeconômico mais alto, que são as ocupações de elite, aquelas nas quais eles estão menos presentes. A formação de uma elite ocupacional negra terá um forte impacto positivo na redução da desigualdade racial no Brasil. Além do “efeito composição” descrito acima, haverá ainda, provavelmente, um “efeito demonstração”. Ou seja, ao verem uma maior presença de pessoas de seu grupo racial em ocupações de maior nível socioeconômico, os jovens negros passam a perceber essas ocupações como algo possível e não como “empregos de brancos”. Os cargos públicos, de modo geral, têm níveis socioeconômicos mais elevados do que a média da estrutura ocupacional brasileira. Assim sendo, as cotas em concursos públicos têm papel fundamental na redução da desigualdade racial.

É necessário reconhecer, contudo, que este processo, ao colaborar para a redução da desigualdade entre grupos raciais, irá, por outro lado, elevar a desigualdade entre os negros. Esta nova realidade tem sido observada nos EUA e na África do Sul, países onde a formação de uma elite ocupacional negra já está bem mais consolidada. Todavia, este novo problema que surgirá (e que será impactante, exigirá soluções) deverá ser enfrentado de outras formas, em particular por um investimento educacional focalizado nas crianças, adolescentes e jovens de famílias negras de baixo nível socioeconômico.

Respeitosamente discordamos do Michael França quando ele diz que o “perigo está em ser conduzido por alguém que teve empurrãozinho em quase tudo na vida”. Os cargos de alto ISEI apenas são ocupados por pessoas que receberam um “empurrãozão”. Agora, se por motivos individuais e sem evidências na realidade, você é contra a redução da desigualdade racial, aí é o caso de nem pegar esse avião.

Sobre os autores:

Jorge Alexandre Neves é Professor titular do departamento de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ph.D. pela universidade de Wisconsin-Madison/EUA, pesquisador PQ-2 do CNPq, ex-diretor da FAFICH-UFMG.

Dalson Figueiredo é Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences a visiting scholar na Universidade de Oxford - 2021/2022.

 

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