Janilson Suzart 

Diones Gomes da Rocha 

Robson Zuccolotto 

 

No último dia 17 de março, a Lei nº 4.320/1964 completou 60 anos. É justamente dessa “jovem senhora” que iremos tratar no presente artigo, estimados leitores.

Em primeiro lugar, porque se trata de um grande marco regulatório nacional das finanças públicas. Ela vem regulando questões orçamentárias e contábeis, ao longo desses 60 anos, permitindo certa padronização em matéria financeira entre os mais diversos entes que compõem a República Federativa do Brasil.

Em segundo lugar, ao longo da sua vigência, diversas interpretações feitas a partir dela, em tese, contribuíram para o descrédito do processo orçamentário (e das informações contábeis governamentais). Não é incomum nos deparamos com a consideração de que o orçamento público é uma mera peça burocrática e/ou uma “peça de ficção”.

Em terceiro lugar, apesar da sua importância, a sua longevidade é derivada mais da inércia do processo legislativo do que da força de seus dispositivos. Sim, é verdade que no próximo 05 de outubro de 2024, completará 36 anos que a Constituição Federal determinou a edição de uma lei complementar para dispor sobre finanças públicas (art. 163, I), o que aposentaria a “jovem senhora” (o que até a data de publicação deste artigo não aconteceu).

Iniciaremos discutindo o papel da lei como marco regulatório das finanças públicas brasileiras. A Lei nº 4.320/1964 possui como referência conceitual o System of National Accounts (SNA), marco regulatório editado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que tem como objetivo fornecer informações sobre o desempenho macroeconômico de um país. À época da edição da Lei nº 4.320/1964, estava vigente a primeira revisão da SNA 1953 (emitida em 1960). É do SNA que vem a segregação de receitas e despesas orçamentárias em correntes e de capital, o destaque das transferências feitas para ou recebidas de outros agentes econômicos, a diferenciação entre inversão financeira e investimento, o estabelecimento de um sistema de contabilização limitado a tais transações, dentre outras particularidades, tudo inspirado em conceitos macroeconômicos.

A lógica do SNA é que o papel desempenhado por uma entidade pública na economia deve ser expresso em função do seu consumo (despesas correntes) e da formação de capital (despesas de capital). Se as receitas forem superiores às despesas (superávit), demonstra-se a formação de poupança que poderá ser utilizada em exercícios futuros (abertura de crédito a partir de superávit financeiro). Se as despesas forem superiores às receitas (déficit), demonstra-se o consumo de poupança e/ou aumento do endividamento estatal. Por exemplo, por essa lógica, não há necessidade de se controlar a depreciação de um bem de capital (um veículo, por exemplo), pois o seu impacto nas finanças públicas ocorrerá no exercício em que foi adquirido ou construído.

A Lei nº 4.320/1964, enquanto marco regulatório para gerar informações macroeconômicas, ainda desempenha de modo adequado tal papel. Em que pese a evolução do SNA, que alcançou a sua quinta versão em 2008, do ponto de vista das receitas e despesas orçamentárias houve mudanças mais qualitativas no modelo, o que não afeta o desempenho obtido com as regras estabelecidas pela “jovem senhora”. Do ponto de vista contábil, o desempenho da referida lei já não é mesmo. Se não fosse a evolução gerada pela edição das Normas Brasileiras de Contabilidade Técnicas do Setor Público (NBC TSP), estaríamos mais distantes da evolução vivenciada pelos países que fizeram a adoção do regime de competência.

A lógica do modelo orçamentário instituído pela Lei nº 4.320/1964 é o regime de caixa. Os impactos das receitas e despesas ficam atrelados a movimentação do caixa e não têm repercussão além do exercício em que ocorrem. Quaisquer aumentos de caixa representam receitas e quaisquer reduções de caixa representam despesas, que podem ser orçamentárias ou extraorçamentárias. Um exemplo clássico disso é que a inscrição de restos a pagar implica em uma receita extraorçamentária para compensar a não saída de caixa dada pelo reconhecimento da despesa orçamentária (visto que não houve pagamento da despesa). Quando do pagamento dos restos a pagar, ocorrerá uma despesa extraorçamentária, seguindo-se a lógica de representar a movimentação de caixa. Quando da sua anulação, em exercícios posteriores, haverá o reconhecimento de uma receita extraorçamentária, pelo aumento da disponibilidade (redução da afetação do caixa).

E é nesse controle do orçamento mediante a lógica de caixa que reside outro aspecto relevante dessa “jovem senhora”. A lógica de caixa é uma excelente ferramenta, quando corretamente aplicada, para evitar déficits e, consequentemente, o aumento do endividamento estatal. A ideia é simples: não é possível gastar mais do que se possui. Assim, os gastos de um ente governamental, se limitados aos montantes em caixa (disponibilidades), fazem com que haja equilíbrio na relação entre as receitas e despesas orçamentárias. É importante lembrar que o endividamento público não é o vilão, mas precisa ser utilizado com parcimônia e, de preferência, em gastos capazes de impulsionar o crescimento econômico. O endividamento para custear gastos correntes, geralmente, são improdutivos. Além disto, o controle do orçamento na base caixa é mais fácil e intuitivo.

Apesar do papel importante da Lei nº 4.320/1964 como marco regulatório nacional das finanças públicas, é necessário destacar que algumas interpretações feitas a partir de seus dispositivos tem enfraquecido o papel do orçamento público, reduzindo a sua importância para uma boa gestão financeira estatal. A seguir, apresentaremos algumas dessas situações.

Nos últimos anos, assistimos o aumento da apresentação de propostas orçamentárias deficitárias, ou seja, cujas despesas eram maiores do que as receitas (para mais detalhes, recomendamos ler A mágica do orçamento desequilibrado: e agora, Mister M?). Ocorre que a Lei nº 4.320/1964 prescreve que “durante o exercício, na medida do possível,” o poder estatal deve buscar “o equilíbrio entre a receita arrecadada e a despesa realizada”.

Contudo, tal situação tem sido interpretada como autorização para propor e, até mesmo, para aprovar orçamentos deficitários. De modo prático, nenhum ente público consegue executar mais despesas do que suas disponibilidades senão se financiar com os seus credores. É necessário obter crédito de modo oficial (por meio de empréstimos ou por financiamento próprio do credor que permite a concessão de prazo superior ao tempo normal para pagamento) ou de modo irregular (“empurrando” os pagamentos para exercícios futuros, quando aumentar as disponibilidades).

Outra situação é a exclusão de transações no orçamento com a justificativa de que se trata de transações permutativas, de transações sem movimentação financeira ou de operações extraorçamentárias. Contudo, a “jovem senhora” em seu art. 3º descreve que:

Art. 3º A Lei de Orçamento compreenderá todas as receitas, inclusive as de operações de crédito autorizadas em lei.

Parágrafo único. Não se consideram para os fins deste artigo as operações de crédito por antecipação da receita, as emissões de papel-moeda e outras entradas compensatórias, no ativo e passivo financeiros.

Podemos notar que a regra é que todas as receitas e despesas devem constar no orçamento. As exceções são as operações de crédito por antecipações de receitas (as chamadas ARO, antecipação das receitas orçamentárias), as emissões de papel-moeda (que impactam o orçamento da autoridade monetária, regido pela Lei nº 4.595/1964) e outras entradas compensatórias, no ativo e passivo financeiros. Essas entradas compensatórias compreendem as transações extraorçamentárias de acordo com a doutrina, ou seja, a entrada de um recurso (ativo financeiro) atrelado a uma obrigação (passivo financeiro) de igual montante que implicará no consumo desse recurso para a quitação dessa obrigação, em momento futuro e novamente em igual montante (se aplicável, haverá atualização monetária de ambos os valores).

Contudo, não tem sido incomum as interpretações de que a permuta de ativos, como, por exemplo, a troca de um terreno pertencente a um ente público por uma edificação pertencente a outro, ocorra à margem do orçamento governamental. Ainda que os valores dos bens permutados sejam idênticos, não há autorização nos dispositivos da Lei nº 4.320/1964 para a realização dessa transação à margem do orçamento público. Em tese, devem ser reconhecidas as receitas (em relação aos bens dados) e despesas (em relação aos bens recebidos) orçamentárias, o que além de tornar mais transparente as transações do ponto de vista financeiro, faz cumprir o princípio do orçamento bruto (art. 3º da Lei nº 4.320/1964).

Outro exemplo é a realização de aplicações financeiras sem o reconhecimento no orçamento. De modo igual ao que ocorreria se uma entidade pública comprasse ações de uma empresa, a “compra” de uma aplicação bancária deve ter o mesmo tratamento orçamentário e não pode ser tratado com uma transação extraorçamentária. É uma aplicação de recursos anteriormente arrecadados e implicará em uma diminuição das disponibilidades, ainda que seja uma aplicação de curto prazo, sendo, portanto, uma despesa orçamentária. Não se trata de uma aplicação compensatória e não haverá movimentação de ativo e passivo financeiros, em igual montante, muito menos não haverá a necessidade de devolução de recursos ao seu proprietário original no futuro. De igual modo, se o reconhecimento de juros ganhos implica em uma receita orçamentária, o reconhecimento de prejuízos em aplicações deve implicar em uma despesa orçamentária e não ser tratada como se fosse uma transação extraorçamentária.

O princípio do orçamento bruto é reforçado pelo princípio da totalidade expresso no caput do art. 6º da Lei nº 4.320/1964: “Art. 6º Todas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus totais, vedadas quaisquer deduções”. Assim, todo ingresso e desembolso feito por um ente público, ainda que tenha contratado um terceiro para fazer as movimentações em seu nome, devem compor o orçamento público. Infelizmente, também, tem sido comum vermos entes governamentais assumindo a prestação de serviços públicos, devido a finalização ou rompimento de concessões, autorizações ou permissões de serviços públicos, contudo, sem reconhecer a movimentação financeira em sua totalidade nos respectivos orçamentos. Durante o período em que o ente governamental assume a prestação do serviço público, os valores arrecadados são receitas orçamentárias e não uma mera compensação de ativos e passivos financeiros (e não devem ser tratado como se fossem uma relação privada). Os desembolsos realizados são despesas orçamentárias em razão da efetiva prestação de serviços ao público, direta ou mediante a contratação de terceiros.

Outro aspecto bastante relevante é o desrespeito ao fato gerador da despesa. De acordo com o art. 35 da Lei nº 4.320/1964:

Art. 35. Pertencem ao exercício financeiro:

I - as receitas nele arrecadadas;

II - as despesas nele legalmente empenhadas.

Nota-se que quando autorizada a realização de uma despesa, o seu empenho deve ser emitido no exercício a que se refere o fato gerador. Todavia, não é incomum, encontrarmos a prática de que a despesa é empenhada apenas no exercício do pagamento, situação essa que não foi expressa pela “jovem senhora”. Ora se o empenho é o ato emanado por autoridade competente que autoriza a realização da despesa em um exercício, a não emissão de empenho no exercício de ocorrência do fato gerador torna o ato de autorizar uma despesa um ato ilegal.

Por fim, passaremos a discutir um fato que macula o sexagenário da “jovem senhora”. Apesar da sua importância, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, há um mandamento para a substituição da Lei nº 4.320/1964 por uma lei complementar que trate de finanças públicas. E até a publicação deste artigo, tal substituição ainda não ocorreu.

A Lei nº 4.320/1964 foi construída em uma lógica própria da sua época. Naquele espaço e tempo, não há dúvidas de que tenha sido um marco relevante e inovador e que seus dispositivos ainda conseguem gerar alguma utilidade para os usuários das informações financeiras estatais, bem como, para os cidadãos que recebem os bens e serviços ofertados pelo Estado a partir dos recursos oriundos da sociedade. Entretanto, há diversos exemplos de situações que não estão abrangidos pela regulação da “jovem senhora” e que provocam muitos problemas para a gestão pública. Listaremos alguns deles.

Os restos a pagar (em alguns casos se convertem em “restos a fazer”) se transformaram em orçamentos paralelos e que conduzem para práticas ineficientes, ineficazes e antieconômicas a partir do uso dos recursos consignados nos orçamentos públicos. Os restos a pagar deveriam abranger apenas uma parcela pequena das despesas anuais, cujas liquidações e/ou pagamentos ocorressem nos primeiros meses do ano seguinte, fruto das aquisições feitas ao final do exercício anterior.

Contudo, não é incomum, encontrarmos restos a pagar com mais de um ano de vigência, em especial, com relação a realização de obras ou aquisição de bens de capital. Por exemplo, a não garantia de que um recurso destinado para uma obra estará disponível nos exercícios seguintes, caso não seja possível iniciar o processo de licitação, leva os gestores públicos a empenhar em um único orçamento o montante total de obras que perduram mais de um exercício, “imobilizando” as disponibilidades de maneira desnecessária.

Outra situação é ausência clara do papel de tesouraria que precisa ser exercido dentro de um ente estatal. Uma tesouraria estatal precisa de regras claras de como proceder para garantir o respeito aos limites legais de despesas, restringindo os gastos de acordo com as metas fixadas pela legislação orçamentária, sem que isso atrapalhe o bom andamento da execução orçamentária por parte das demais entidades governamentais. Não tem sido incomum, o “represamento” de recursos que são liberados apenas ao final do exercício. Também precisa ser mais bem definido, o uso de uma conta única, para evitar que a legislação ordinária exija a abertura de outras contas, apenas para fins de controle, o que contribui para a desorganização das finanças públicas e ausência de um controle efetivo do erário.

As regras, também, precisam ser claras em relação às garantias e contragarantias, de modo a aumentar a segurança nas transações que envolvem diversos entes públicos em relação a empréstimos e financiamentos. Os garantidores precisam saber que não estarão impedidos por liminares (ou instrumentos congêneres) de acessar recursos quando os garantidos se tornarem inadimplentes. Os garantidos, por sua vez, precisam saber que contam com um processo ágil na obtenção de garantias, o que facilita o seu planejamento financeiro para realizar gastos estruturantes em seus territórios.

A segregação entre informações contábeis, informações orçamentárias e estatísticas fiscais precisa ser tratada em futura legislação sobre finanças públicas. De igual modo ao que acontece com entidades de outros setores, as entidades governamentais precisam saber que as questões contábeis serão tratadas por normas contábeis, o que permitirá mudança do modelo contábil do setor público do regime de caixa para o regime de competência. As transações econômicas idênticas devem ter o mesmo tratamento independente de possuírem formas jurídicas diferentes, garantindo que elas sejam representadas de forma fidedigna.

Não podemos em novo mandamento legal, repetir as confusões causadas pelo suposto “regime misto”, uma vez que a execução orçamentária da despesa, em nada, se assemelha ao reconhecimento da despesa pelo regime de competência e sempre esteve associada à movimentação de caixa; ou, ainda, que a contabilidade por competência seja sinônimo da aplicação do modelo proposto pelas NBC TSP que têm no regime de competência o seu núcleo irradiador da forma de produção das informações financeiras.

Esperamos que a nova lei sobre as finanças públicas seja mais efetiva na criação de um órgão que congregue os entes da federação, as entidades profissionais e a sociedade civil organizada com a competência de produzir interpretações sobre situações específicas relacionadas com as finanças públicas. É importante que transações semelhantes recebam o mesmo tratamento em toda federação brasileira, seja por parte de quem executa, seja por parte de quem fiscaliza. É necessário que um ente não seja ao mesmo tempo responsável por editar a interpretação da norma e por aplicá-la, um verdadeiro conflito de interesses que não garantirá a escolha da melhor técnica e pode levar ao gerenciamento de resultados. É primordial que se deixe mais claro o papel dos órgãos de controle sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos entes públicos, para evitar omissões ou excessos. É urgente que se atualize as práticas financeiras estatais para melhor refletir as condições atuais do nosso espaço e tempo.

Sobre os autores:

Janilson Suzart é Doutor em Controladoria e Contabilidade pela FEA/USP. Auditor da Controladoria Geral da União

Diones Gomes da Rocha é Doutor em Administração Pública e Governo pela FGV EASP. Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União

Robson Zuccolotto é Doutor em Controladoria e Contabilidade pela FEA/USP. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

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