Élida Graziane Pinto

Após a revogação do teto, especuladores curto-prazistas sobre a sustentabilidade da dívida pública brasileira buscam estabelecer um rígido dogma totalizante para se fiarem religiosamente. Daí se explica o surgimento de coro ruidoso e muito bem articulado, que tenta impor, a qualquer custo, a simplificação linear do tamanho máximo que o Estado poderia alcançar, sem supostamente gerar pressão inflacionária ou implicar um fictício abismo de endividamento.

Sem um devido processo que resguarde contraditório, os defensores da meta de “déficit primário zero” em 2024 elevam o tom das suas ameaças e rechaçam — agressivamente — quaisquer reflexões plurais que lhe façam contraponto. A bem da verdade, parece haver uma espessa cortina de fumaça em torno do regime jurídico da meta de resultado primário da lei de diretrizes orçamentárias (LDO) da União para 2024.

Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO) em reunião. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado (nov. 2023)

O nível do déficit primário é escolha política que, a rigor, não traz consigo repercussão necessariamente negativa para a sustentabilidade intertemporal da dívida pública. É preciso desmistificar a tese de que seria fiscalmente irresponsável caso a LDO adotasse uma trajetória mais suave de gestão do déficit primário, o qual, aliás, tem sido registrado pelo governo federal há quase uma década.

A sustentabilidade da dívida pública é equação que leva em consideração tanto o nível consolidado da dívida (em termos de dívida bruta do governo geral), quanto o nível de riqueza e produção do país (medido pelo produto interno bruto). Se o país cresce pouco ou não cresce, isso é tão ou mais grave para a avaliação intertemporal da dívida quanto o próprio volume global de receitas e despesas governamentais.

Eis a razão pela qual há muita distorção analítica e excesso retórico em torno da meta de resultado primário para o próximo exercício financeiro. Tal manipulação da opinião pública visa capturar a agenda das políticas públicas da União não apenas para 2024. Como as metas fiscais inscritas na LDO se referem ao exercício de referência e aos dois anos subsequentes, trata-se de uma tensão que pretende pautar o triênio 2024-2026, sobretudo em termos de condicionantes que impõem o contingenciamento de despesas discricionárias, o que pode, no limite, inviabilizar a ação planejada e transparente na consecução progressiva das políticas públicas a cargo do governo federal.

Ao invés de o Brasil pautar, neste momento, o horizonte de médio prazo do próximo plano plurianual (PPA) e projetar os investimentos e os programas de duração continuada que poderiam nos levar a um patamar socialmente mais inclusivo, ambientalmente equilibrado e economicamente pujante até 2027, estamos aprisionados a um foco reducionista sobre acionamento, ou não, dos gatilhos da Lei Complementar 200/2023 (LC 200/2023). No limite, tal estratégia visa causar constrangimento ao custeio das políticas sociais, diante de um provável elevado nível de contingenciamento de despesas primárias ao longo de 2024, para que seja politicamente possível pautar a agenda de uma revisão contracionista dos pisos em saúde e educação para reduzir o ritmo da sua expansão e ajustá-los à velocidade determinada pelo “regime fiscal sustentável”, de que trata a citada LC 200.

Por trás desse impasse, há um grande conflito distributivo no debate das regras fiscais brasileiras. É preciso evidenciar a quem aproveita essa espessa cortina de fumaça que interdita o planejamento de médio prazo do país. Impor constrangimento fiscal de curto prazo aproveita tanto aos agentes que precificam risco da dívida e são remunerados com juros mais altos, quanto aos parlamentares que barganham maior espaço orçamentário para suas emendas paroquiais. Ainda que sejam conduzidos por motivos e finalidades distintos, ambos os grupos frustram qualitativamente a agenda republicana do PPA, porque lhes aproveita mais a gestão curto-prazista de boca-de-caixa na execução orçamentária que o contingenciamento enseja.

Criar dificuldade para vender facilidades é, em grande medida, a estratégia que mobiliza os agentes política e economicamente mais hábeis a pautar suas prioridades alocativas à frente dos interesses do conjunto da sociedade. Vilanizar ontologicamente a ação governamental e defender a redução linear das despesas primárias mediante limites intransponíveis, ainda que isso implique a erosão fiscal do pacto constitucional civilizatório de 1988, são estratégias que mantêm a opacidade da regressividade tributária e da natureza ilimitada das despesas financeiras, de um lado, bem como amplificam o trato patrimonialista das emendas parlamentares impositivas, de outro.

O foco do ajuste fiscal exclusivamente incidente sobre despesas primárias e, por conseguinte, tão demandante da busca do déficit primário “zero” pelo prisma da redução da ação governamental implica — concomitantemente — a ocultação das iniquidades na gestão das receitas governamentais e na seara das despesas financeiras; tanto quanto amplifica o espaço para barganhar exceções político-paroquiais no varejo dos interesses de curto prazo eleitoral.

Obviamente, o equilíbrio nas contas públicas exige que se vá além da seletiva abordagem de ajuste adstrito às despesas primárias, como fez o teto dado pela Emenda Constitucional 95/2016 e como se repete agora com a Lei Complementar 200/2023.

Somente haverá racionalidade alocativa se o país conseguir sistematizar e introduzir a noção de ordenação legítima de prioridades, a partir do fortalecimento do planejamento. Todo o debate de qualidade do gasto público e de atuação legítima do Estado brasileiro passa pela integração do planejamento com o orçamento. A partir daí, seria possível tentar consolidar, em estrita consonância com a Constituição, essa visão sistêmica das finanças públicas, sem que restem vilanizadas ou amesquinhadas, de forma preconceituosa e apriorística, as despesas primárias ou mesmo toda a própria política fiscal.

Em cumprimento à Constituição Federal (CF), o planejamento ordena prioridades incomprimíveis, donde há correlação instrumental entre as receitas e esse tamanho constitucionalmente necessário do Estado. Se houvesse clareza acerca do custo de arcar com os compromissos constitucionais impostos ao governo brasileiro, a gestão da dívida se tornaria mais passível de planejamento intertemporal. Tal norte qualitativo dado pelos eixos do PPA e da LDO (respectivamente, na forma dos programas de duração continuada e das despesas não suscetíveis de contingenciamento) permitiria que o Estado expandisse, de forma contracíclica, seus gastos, para estimular a economia, fazendo os investimentos necessários à retomada do crescimento econômico.

Saber que há um tamanho constitucionalmente necessário do Estado para manter esse mínimo de direitos fundamentais e, concomitantemente, que a carga tributária tem um patamar instrumental a cumprir é esforço que nos permitiria diagnosticar melhor e paulatinamente equacionar alguns dos nossos maiores conflitos distributivos. Assim, dentro do debate do PPA e da LDO, isso se tornaria qualitativamente mais evidente. Essa transparência acerca do custeio necessário do Estado explicitaria quem está se ausentando de participar, conforme a sua capacidade contributiva e quem está sendo prejudicado ao longo do tempo, com serviços públicos precarizados ou passivos judicializados.

Todavia vivemos sob uma disputa balcanizada e irracional, a todo tempo, pelos recursos escassos, sem que seja cumprido sequer o basilar do conjunto de despesas já definidas como programas de duração continuada do PPA e como despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento na LDO. Filas de espera nos benefícios assistenciais e previdenciários, passivos judicializados, restos a pagar e omissões regulamentares são exemplos de preterição na ordenação legítima de prioridades feita pelo PPA e pela LDO.

Adiar o cumprimento do horizonte civilizatório da CF/1988 tem sido uma forma oculta, deliberada e muito tergiversadora de ajustar as contas públicas no Brasil. Não é sem razão que acumulamos uma dívida social tão ou mais grave que a sua congênere fiscal, algo mensurável, por exemplo, no déficit de vagas em creches e no próprio adensamento de demandas judiciais.

A despeito de tudo isso, são incontornáveis a supremacia normativa da Constituição Federal e a primazia do PPA 2024/2027 para todas as demais leis do ciclo orçamentário ao longo do próximo quadriênio. Negar a ascendência hierárquica de ambos em relação à meta de resultado primário prevista na LDO é dar causa a uma inversão de prioridades que, em última instância, apenas vilaniza a ação estatal e erode fiscalmente o pacto constitucional civilizatório de 1988.

Sobre a autora

Élida Graziane Pinto é Livre-docente em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo, Professora do Curso de Administração Pública e do Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) e Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo. Na qualidade de Visiting Scholar, tem realizado estágio pós-doutoral no Center for Brazil Studies, vinculado ao David L. Boren College of International Studies (CIS), da Universidade de Oklahoma.

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