Temístocles Murilo de Oliveira Júnior

 

Recentemente, em meados de março, um conflito entre narrativas sobre o acesso à informação no Brasil ganhou destaque. No noticiário, reportagens indicaram que o atual governo teria imposto restrições de acesso à informação em números próximos aos de seu antecessor, alegando a observância à privacidade. Em resposta, a Controladoria-Geral da União (CGU), que atua e é amplamente associada ao combate à corrupção no Executivo Federal, afirmou que estas restrições teriam se dado em volume bastante inferior e ocorreram, principalmente, nos casos em que seria exigido grande esforço de tratamento dos dados pessoais. Paralelamente, organizações da sociedade civil e especialistas apontaram avanços no acesso, porém salientaram discricionariedades que possibilitariam restrições indevidas.

Em pesquisa cujo artigo foi publicado no primeiro número da Revista de Administração Pública (RAP) em 2024[i], explorei juntamente com Cristiano Monteiro, professor da UFF, como a dinâmica política de disputas e acomodações de interesses forjaram a Lei de Acesso à Informação (LAI) no Brasil. Identificamos, de um lado, preferências por mudanças mais significativas para ampliação da liberdade da informação, que tornariam o Brasil mais aderente aos padrões internacionais. De outro, interesses pela continuidade do monopólio de órgãos de governo sobre o acesso. Além disso, coletamos evidências da importância da agenda anticorrupção na construção da LAI. Apesar de o acesso ter sido erigido entre os direitos fundamentais, principalmente ligados à liberdade de expressão e de pensamento, a LAI foi legitimada com base na utilidade deste acesso para o combate à corrupção e teve como maior impulsionador a CGU.

Durante os 9 anos entre o início da tramitação do projeto de lei da LAI no Congresso até sua regulamentação pelo Decreto nº 7.724, conflitos e negociações giraram em maior peso em torno de quatro questões. Primeiro, entre a eliminação ou a continuidade de hipóteses de restrição de acesso de prazo indeterminado, o chamado sigilo eterno. Depois, em relação ao escopo de aplicação da LAI como sendo o mais amplo ou um mais limitado a somente parte dos poderes e esferas. Por fim, na definição das organizações responsáveis pela coordenação e supervisão da implementação da LAI, bem como pela decisão final sobre recursos a pedidos negados. Entre os atores que participaram dessa dinâmica estavam, de um lado, uma frente parlamentar, ONGs e organismos internacionais, cujas preferências primárias estavam no fim do sigilo eterno e no escopo amplo. De outro, a CGU e a Casa Civil da Presidência, que se concentraram na busca pelo monopólio da coordenação e da supervisão da LAI e sobre a decisão final de recursos no Executivo Federal. Por fora, uma aliança no Senado focada nas preferências de setores da defesa e relações exteriores cujos interesses não estavam distribuídos neste formato.

A dinâmica de disputas e acomodações de interesses se concretizou nos resultados. As duas maiores coalizões identificadas obtiveram êxito em relação a suas preferências primárias, mas não às secundárias. A frente parlamentar e as organizações não ligadas ao governo foram atendidas pela imposição de prazos máximos de restrição ao acesso, de 50 anos no caso de informações classificadas e de 100 anos no caso de informações pessoais, e pela definição de um escopo de aplicação da LAI. Por outro lado, a coordenação e a supervisão da LAI no Executivo Federal ficaram a cargo da CGU e o colegiado criado por normas anteriores e que detinha a competência pela decisão final sobre recursos, a Comissão Mista de Reavaliação de Informações Classificadas (CMRI), permaneceu sendo presidida pela Casa Civil e sendo composta somente por representantes do Executivo Federal.

Quanto à influência da agenda anticorrupção que, no Brasil, por conta da cultura do escândalo, apresenta grande força de apelo[ii], esta não se mostrou apenas pelo fato de a CGU ter ficado com o papel de coordenar e supervisor a LAI e por ter assento na CMRI. Os argumentos mais frequentes em favor da LAI foram centrados na importância do acesso para redução da corrupção. Além disso, com utilizando-se desses argumentos, a CGU liderou os esforços de elaboração do projeto de lei da LAI desde seu início e ainda capitaneou a formulação do Decreto nº 7.724 e a posterior criação dos mecanismos de acesso, como o sistema e-SIC, hoje renomeado para Fala.Br[iii]. Desde então, este órgão representa o governo brasileiro nos fóruns e parcerias internacionais que se relacionam com o acesso à informação e atua em ações de promoção e de mensuração do acesso à informação em Estados e Municípios[iv]. Com a recente edição do Decreto nº 11.529, de 2023, a CGU obteve as competências de órgão central do sistema e da política de acesso à informação do Executivo Federal, agora, formalmente instituídos.

O fato de a LAI resultar de uma dinâmica política e da força da agenda anticorrupção não implica que o acesso à informação no país seja inadequado ou que seus efeitos sejam irrelevantes. Tanto esta lei quanto as iniciativas e mecanismos que se seguiram permitem indicar que o Brasil ocupa posição destaque entre países com legislações de acesso. Estudos comparados e indicadores internacionais, mesmo não focados na corrupção, reforçam esta indicação[v]. Entretanto, há reflexões a serem postas a partir de questões em aberto que restaram desta dinâmica e da vinculação do acesso à informação ao combate à corrupção após mais de 12 anos da sanção da LAI, período no qual houve três mudanças de governo.

Por que a política de acesso à informação no Executivo Federal está sob a centralidade de um órgão anticorrupção ao invés de órgãos de justiça ou direitos humanos? A Lei nº 11.111, de 2005, anterior à LAI e que tratava do direito à informação previsto no art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, originou-se da Medida Provisória nº 228, de 2004, cuja proposta foi elaborada e apresentada pelo Ministério da Justiça, Casa Civil, GSI e AGU, sem evidências da participação da CGU. Assim, a posição de centralidade alcançada posteriormente por esta Controladoria em relação à política de acesso parece estar bastante ligada ao fato de ela ter assumido o protagonismo do projeto de lei desde o início de sua formulação, que, por sua vez, tem como base o discurso que, desde meados dos anos 2000, atribui ao acesso à informação o sentido de representar principalmente uma ferramenta anticorrupção[vi].

O acesso à informação tem sua utilidade para além da luta anticorrupção. Em outro estudo que realizei com Ana Farranha, professora da UnB, e Frederico Lustosa da Costa, professor da UFF, focado nos assuntos mais frequentes entre os pedidos enviados pelo Fala.Br, observamos um significativo aumento no número daqueles relacionados a informações sobre serviços de saúde e auxílios emergenciais no início da pandemia de COVID-19[vii]. Os achados sugeriram que as ferramentas de acesso foram utilizadas por cidadãos como meio de se obter informações que permitissem o exercício de direitos fundamentais naquele contexto de calamidade. 

Ainda persistem os motivos para que as competências de coordenação e supervisão da LAI não estejam sob a égide de uma agência com maior autonomia? Há argumentos expostos durante as discussões sobre o projeto de lei da LAI que indicam que a criação de uma agência nacional acarretaria custos e demandaria arranjos que necessitariam estar previstos em lei aprovada em período anterior, enquanto o governo federal, naquela época, teria urgência na rápida aprovação da LAI devido a compromissos internacionais[viii]. Doze anos se passaram e a urgência já foi resolvida; no entanto, não há evidências de retorno ao debate sobre o assunto.

É válido ressaltar que atribuir a coordenação e a supervisão a uma organização mais autônoma não garante, automaticamente, que a implementação da LAI vá ocorrer de maneira exclusivamente objetiva, com maior eficiência e imparcialidade. No entanto, é importante considerar que o acesso à informação frequentemente enfrenta oposição e pode ser alvo de tentativas de interferência por interesses com reduzidos pendores democráticos. Dessa forma, uma maior autonomia na coordenação e supervisão da LAI, embora não represente a eliminação completa da influência desses interesses, pode acarretar barreiras que exijam esforços e imponham maiores riscos àqueles que busquem diminuir sua efetividade.

Quais são as razões que justificam o monopólio do Executivo Federal na composição da CMRI, excluindo representantes de outros poderes ou mesmo da sociedade civil? Interessante que o texto aprovado pelo Congresso dispunha que esta Comissão seria “composta por Ministros de Estado e por representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário”. Este trecho foi subtraído por veto presidencial, alegando-se a “separação dos poderes” e que o § 5º do art. 35 permitiria nova composição pela regulamentação da LAI. Dessa forma, pelo Decreto nº 7.724, o Executivo Federal estabeleceu que a CMRI seria formada exclusivamente por seus representantes.

Deixando de lado discussões sobre possíveis afrontas a princípios ou eventuais inconstitucionalidades, o arranjo decorrente da LAI e do Decreto nº 7.724, que confere ao Executivo Federal o monopólio da coordenação e supervisão e da decisão final sobre recursos de pedidos negados de acesso a informações sob sua guarda, propiciou a replicação desse modelo pelos demais poderes e esferas. Considerando as desigualdades regionais, bem como as especificidades e diferentes capacidades entre os poderes e níveis de governo no Brasil, já era de se esperar que houvesse variações no grau de implementação da LAI pelo país[ix]. No entanto, tais variações podem estar sendo exacerbadas, visto que cada assembleia legislativa, câmara municipal, tribunal de justiça, ministério público estadual, prefeitura e governo de estado, além das Casas do Congresso Nacional, dos tribunais superiores e do MPU, detém o monopólio da implementação e da decisão final sobre o acesso ou a restrição a suas informações. Este monopólio está na raiz da alargada discricionariedade dos órgãos em relação ao acesso, sendo uma situação que foi legitimada na trajetória da própria LAI.

Apesar das questões e reflexões acima, importa reassentar que o peso das disputas e acomodações e a força da agenda anticorrupção na trajetória da LAI não representam necessariamente marcas deletérias. A lei de acesso que temos e que resultou desses fatores é mais avançada do que as normas anteriores justamente porque foi construída por uma dinâmica política que, na verdade, é mais próxima do ideal democrático. Mais que isso, sua aprovação pode ter sido resultado de sua associação ao discurso contra a corrupção, que reduziu a força dos interesses que seriam contrários ao avanço do acesso à informação.

Passados mais de doze anos desde a sanção, já podemos olhar em perspectiva sobre a trajetória da LAI com mais clareza e, assim, refletir sobre os traços resultantes desses fatores. As questões em aberto apresentadas neste texto exploram parte destes traços e só fazem sentido se reconhecermos que o acesso é um tema vivo e que os instrumentos de sua implementação devem fazer parte de esforços de aprimoramento que sejam críticos, contínuos e mais participativos. Com isso, para além depreciar os avanços, o que se buscou aqui foi incitar estes esforços a partir de um debate mais qualificado que permita a busca por novos horizontes de possibilidades para o fortalecimento do acesso à informação no país.

Notas

[i] OLIVEIRA JÚNIOR, Temístocles Murilo; MONTEIRO, Cristiano. Dinâmica Política da Formulação da Política de Acesso à Informação no Brasil. Revista da Administração Pública, 58(1), 2024. https://doi.org/10.1590/0034-761220230069

[ii] OLIVEIRA JÚNIOR, Temístocles Murilo. Cultura do escândalo e a “ortodontia” da accountability em democracias recentes: as reformas anticorrupção no Brasil na “Era Lava Jato”. Revista da CGU, 11(18) 2019. Disponível em https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/44202.

[iii] O envio e a resposta a pedidos de acesso à informação no Executivo Federal se dão pelo sistema Fala.Br, desenvolvido, mantido e supervisionado pela CGU, que é acessível entre o bloco de URLs deste órgão, pelo endereço eletrônico https://falabr.cgu.gov.br.

[iv] São exemplos a Parceria Governo Aberto, os compromissos internacionais e as parcerias com Estados e municípios como o Time Brasil, cujas informação estão acessíveis pelo endereço eletrônico https://www.gov.br/cgu/pt-br/governo-aberto.

[v] Entre os indicadores e rankings, destacam-se o RTI Rating, disponível em https://www.rti-rating.org/, o T-Index, disponível em https://corruptionrisk.org/transparency/, e o International Budget Partnership, disponível em https://internationalbudget.org/open-budget-survey/rankings.

[vi] OLIVEIRA JÚNIOR, Temístocles Murilo; LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Reforma do Estado e Política de Acesso à Informação No Brasil. In: CAVALCANTE, P.; SILVA, M. (org.). Reformas do Estado no Brasil: Trajetórias, Inovações e Desafios. Brasília: IPEA, 2020. p. 365-390. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10952/1/ReformaEstadoPolitica_cap14.pdf

[vii] OLIVEIRA JÚNIOR, Temístocles Murilo; FARRANHA, Ana; LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Changes in Brazil FOI Act request: moving towards the defense of Human Rights? Budapeste: IRSPM, 2023.

[viii] Este compromisso se referia a um dos requisitos exigidos para que o Brasil pudesse assumir a coliderança da Parceria Governo Aberto, por convite do governo estadunidense, que implicava haver uma lei de acesso à informação aprovada no país.

[ix] A Escala Brasil Transparente, da própria CGU, disponível pelo endereço eletrônico https://mbt.cgu.gov.br, e as publicações de ONGs como a Transparência Brasil, disponíveis em https://www.transparencia.org.br/publicacoes, apontam a existência de diferentes níveis de implementação da política de acesso à informação entre poderes e esferas de governo.

Sobre o autor:

Temístocles Murilo de Oliveira Júnior é pesquisador PosDoc em Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP/ULisboa) e pesquisador do Laboratório de Governança, Gestão e Políticas Públicas em Defesa Nacional (Lab GGPP)

* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Blog Gestão, Política & Sociedade.

 

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