Pedro Cavalcante

Jackson De Toni

 

A Neoindustrialização é o termo usado pelo governo Lula/Alckmin para o conjunto de políticas públicas (policy mix) direcionado a reverter o processo de desindustrialização prematura que o país vem passando nas últimas décadas com efeitos negativos sociais, políticos e ambientais, além de prejuízos à produtividade, à competitividade e ao crescimento da economia. Essa Estratégia também reflete a tendência observada em nações líderes globais em inovação de recorrer à grandes pacotes de ações governamentais para acelerar o processo de recuperação econômica pós pandemia e continuar progredindo tecnologicamente, a exemplo das nações europeias, Estados Unidos e Coréia do Sul. As novas políticas industriais, intensivas em inovação e parcerias com o setor privado, ganham força também com a reindustrialização (reshoring) e os impactos do crescimento da China nos mercados maduros. Nesse contexto, duas questões emergem: i) o quão convergentes são os objetivos e diretrizes da Neoindustrialização brasileira com tais experiências internacionais e; ii) quais os principais desafios para a efetiva implementação desse policy mix?

As bases da Estratégia foram apresentadas em julho[1] e, desde então, pautam os trabalhos técnicos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), que reúne representantes de 21 órgãos governamentais e 21 representantes da sociedade civil/setor produtivo. Essa composição já indica o alinhamento com uma das premissas das novas políticas industrial e de inovação (PII), ou seja, o esforço colaborativo constante entre os setores público e privado no processo de formulação das iniciativas[2]. Cabe registrar que a nova composição do colegiado difere daquela original instituída pelo primeiro governo Lula em 2004. Agora o CNDI reúne representações institucionais, das entidades do setor produtivo, ao contrário da experiência anterior quando foram nomeadas personalidades do setor. Esse detalhe não é desprezível, busca-se agora maior legitimidade institucional para o processo de concertação. A ênfase na coordenação se assemelha ainda ao arranjo de governança do plano coreano (Korean New Deal), uma vez que organiza a gestão e acompanhamento das ações em uma perspectiva holística e integrada envolvendo diversas áreas dentro do governo para lidar com as diferentes frentes de atuação.

Ademais, outra novidade da Neoindustrialização é a orientação por missões, isto é, um portfólio de projetos quantificáveis e embasados em dados para estimular o sistema nacional de inovação (SNI) a alcançar grandes objetivos em diferentes setores da economia e com intervenções variadas, tanto públicas quanto privadas[3]. Conforme Mazzucato (2018) a lógica orientada às missões teria características específicas:

  1. São iniciativas de cima para baixo que respondem a necessidades percebidas como urgentes pela sociedade (desafios societais), com forte apoio político (que tem vantagens e desvantagens).
  2. Não são tecnologias específicas – são abordagens multidisciplinares em torno de um determinado tema, como a questão do clima, que aborda energia, mobilidade, reciclagem, tecnologias e muitos outros.
  3. Essas iniciativas não se limitam a obstáculos tecnológicos que seriam então “conduzidos” à aplicação: a difusão e a adoção são centrais para a realização de novas missões.
  4. As iniciativas devem ser elaboradas em estreita colaboração com as partes interessadas, incluindo a sociedade civil, cientistas e o setor privado.
  5. Os desafios de governança incluem uma fase de coordenação com três dimensões: (i) setores governamentais; (ii) disciplinas de pesquisa; e (iii) aumento da cooperação internacional.

Nessa direção, a PII baseada em missões no Brasil se volta à seis ecossistemas, ilustrados a seguir:

 

Figura 1 – Missões da Neoindustrialização no Brasil

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Fonte: Resolução CNDI/MDIC Nº 1, de 6 de julho de 2023.

Essa abordagem, embora inédita no âmbito nacional, tem sido historicamente utilizada pelo SNI norte-americano não apenas na correção de falhas de mercado, mas, sobretudo, para criar novos mercados de tecnologias disruptivas. Outra semelhança com o atual pacote de PII dos EUA são os setores priorizados que convergem nas indústrias de defesa, agropecuária, infraestrutura e saúde[4]. Em relação ao foco, a Neoindustrialização brasileira está também alinhada à nova estratégia industrial da União Europeia na medida em que ambas reforçam os objetivos de transição para economia verde e digital[5]. Embora tenham algumas especificidades distintas, todos os pacotes compartilham os seguintes princípios norteadores: enfrentamento às desigualdades socioeconômicas, promoção da produtividade e da competitividade, resiliência da economia frente a choques exógenos, como também o fomento ao emprego de qualidade.

Portanto, tudo indica que o processo de formulação da Estratégia brasileira está em compasso com as melhores práticas internacionais, mas isso é suficiente? Na prática, não. O mais difícil é implementar na plenitude esse conjunto de políticas e, para isso, os desafios não são nada triviais. Primeiro, mais importante que um bom planejamento e a sofisticação no desenho do policy mix é a capacidade de manter as políticas públicas e parcerias público-privado perenes e robustas no médio e longo prazo, considerando as magnitudes e complexidades dos objetivos supracitados. Nesse sentido, é essencial criar mecanismos que enfrentem a recorrente volatilidade no financiamento e a fragilidade institucional das organizações que operacionalizam o PII no Brasil[6]. Esse esforço exige de forma intensa habilidades de coordenação institucional, horizontal e vertical, no âmbito governamental para compatibilizar as diversas agendas setoriais.

Quanto aos recursos orçamentários necessários para a transformação produtiva almejada após quase uma década de desmonte[7], é essencial a ampliação significativa do financiamento das medidas da Neoindustrialização, especialmente, se comparamos com as outras três experiências de pacotes que destinam centenas de bilhões de dólares anualmente às suas execuções. No caso doméstico, esse cenário é ainda mais complicado, pois é preciso também engajar o setor privado a investir em inovação e P&D, o que historicamente é bem abaixo da média mundial.

Por fim, o principal desafio dessa macropolítica é se tornar, de fato, uma prioridade na agenda governamental brasileira. A superação da armadilha de renda média e, o consequente, desenvolvimento tecnológico, econômico, inclusivo e sustentável, demandam ampla  visão e ações de longo prazo (não de quatro anos, mas de décadas).Além disso, são necessários esforços de coordenação e cooperação dentro e fora do aparato estatal, compatibilidade com a política macroeconômica e contínua construção de competências e habilidades na administração pública para formular políticas públicas efetivas e adaptáveis e nas firmas para gerar e absorver inovações. Para tanto, as experiências dos Tigres Asiáticos e, mais recentemente da China, demonstram que esse caminho é viável, mas que depende inexoravelmente da valorização, por parte das lideranças políticas, empresariais e da sociedade, de que a política industrial e de inovação é tão importante quanto à de saúde, educação básica ou segurança pública. Sem isso, continuaremos fadados à periferia econômica global com todas suas sérias consequências sociais que se agravam a cada dia.

Sobre os autores:

Pedro Cavalcante é Doutor em Ciência Política e Professor do mestrado e doutorado em Administração Pública no IDP e Enap.

Jackson De Toni é Economista com Doutorado em Ciência Política (UnB) e Professor de Planejamento e Políticas Públicas

Notas

[1] https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-cndi/mdic-n-1-de-6-de-julho-de-2023-*-497534395.

[2] Aiginger, K; Rodrik, D. Rebirth of Industrial Policy and an Agenda for the Twenty-First Century. Journal of Industry, Competition and Trade, 20:189-207, 2020.

[3] Mazzucato, M. Mission-oriented innovation policies: challenges and opportunities. Industrial and Corporate Change, 27(5), 803-815, 2018.

[4]https://www.whitehouse.gov/briefing-room/presidential-actions/2021/02/24/executive-order-on-americas-supply-chains/.

[5] https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_20_416.

[6] Cavalcante, P. Governança da Política de Inovação no Brasil e nos EUA: uma abordagem comparada. Texto para Discussão (IPEA), v. 2878, p. 1-50, 2023.

[7] Cavalcante, P. Dirigindo na Contramão: expansão e desmonte da política de inovação no Brasil. In: Gomide, A.; Morais, M.; Leopoldi, M. (orgs.) Desmonte e Reconfiguração de políticas públicas (2016-2022), Brasília, Ipea, 2023.

 

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