Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Marco Antonio Carvalho Teixeira

 

Em um país federativo de grande dimensão territorial, e com enormes assimetrias regionais em termos de capacidades estatais, não é incomum no processo de formulação e implementação de políticas públicas que experiências de sucesso surjam com base numa visão bottom up (de baixo para cima), gestadas em estados e municípios, migrando com aperfeiçoamento para a esfera federal.

Alguns casos são emblemáticos, como o Programa Bolsa Família, que teve como origem a unificação de programas federais de transferência de renda, como o Bolsa escola, e que veio de experiências de sucesso no Distrito Federal e na cidade de Campinas, no Estado de São Paulo.

Outro exemplo importante, dentre tantos existentes em diversas áreas de políticas públicas, é o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) de 2012, do governo Dilma Rousseff, que teve como inspiração o Programa Alfabetização na Idade Certa (PAIC), implantado no estado do Ceará com grande sucesso.

A migração de modelos das esferas subnacionais é bem interessante no mosaico de possíveis soluções para problemas que emergem na agenda, sendo testados previamente no ambiente brasileiro, com suas características, o que já é mais complexo na importação de políticas de sucesso de outros países, que esbarram em peculiaridades sociais, legais e culturais que restringem o seu desempenho.

Apesar desse cenário, ainda é muito forte a formulação top down, com uma enorme influência da esfera federal na formação da agenda, tendo predominância a figura de grandes programas nacionais regrados na União e com a implementação a cargo de estados e municípios, mormente nas políticas sociais, em um traço característico de nosso federalismo, e quem tem vantagens explícitas na economia de escala, na redução de desigualdades e no processo de monitoramento.

Entretanto, no Governo Jair Bolsonaro (2019-2022), esse desenho centrípeto predominante do processo de desenho das políticas sociais sofreu abalos. Na campanha eleitoral de 2018, o então candidato utilizou-se fartamente do bordão “mais Brasil, menos Brasília”, o que se repetiu na mensagem presidencial ao Congresso de 2019, como uma promessa de menos insulamento dos gabinetes da esfera federal, e de divisão do poder entre os entes no federalismo, dando mais autonomia na ponta.

No decorrer dos quatro anos, tal promessa de porosidade se mostrou fracassada, traduzida no abandono dos entes subnacionais a sua própria sorte, pelas lacunas de coordenação e assistência presentes na atuação do ente federal, em especial no período da pandemia, como bem tratado por Abrucio e Grin em abril de 2020.

Essa promessa de autonomia do parceiro se converteu em uma ausência que, ainda que tenha estimulado formas de organização, como o consórcio Nordeste, teve efeitos danosos em estabelecidos desenhos de política social, com a desestruturação de iniciativas que contavam com a participação dos entes subnacionais, como o auxílio que substituiu o Bolsa Família, e ainda, tentativas de esvaziamento de competências pela busca da vinculação dos comandantes das polícias militares diretamente à esfera federal.

Autonomia virou desamparo, e na hora mais difícil isso custou caro aos entes subnacionais. Mas, sem adentrar muito nos casos específicos dessa descoordenação, que demandariam um outro tipo de texto, mais robusto, o que importa agora, com a mudança de governo, é a discussão da reversão desse quadro e da construção de novas relações, que signifique o resgate do papel coordenativo da União, sem deixar de lado o anseio de mais autonomia e cooperação no plano federativo.

O fato de o presidente Lula ter nomeado alguns ex-governadores como ministros em pastas capilarizadas, bem como algumas de suas falas públicas de prestígio ao modelo federativo e ao papel de estados e municípios, tem dado o tom nesse primeiro ano de governo, cuja pauta de reconstrução passa necessariamente pelo fortalecimento dessas relações interfederativas, mormente nas políticas sociais, que constitucionalmente demandam por maior cooperação entre os entes.

Uma das vias é a busca de uma “botonupização” da política social, de uma porosidade maior, de captação de experiências de sucesso localmente e que possam ser aperfeiçoadas e disseminadas na via top down, e que essas ações de cima para baixo tenham regulações mais finalísticas e menos procedimentais, para que surja espaço para adaptação e inovação na implementação na ponta.

Prêmios de boas práticas, seminários, bolsas de pesquisa, câmaras de debate permanente, são exemplos de instrumentos que possibilitam a construção desse desenho que permite as vantagens coordenativas de grandes programas nacionais combinadas aos ganhos da autonomia na ponta, na complexa mágica do federalismo, o único que pode dar conta de um país tão grande e desigual como o Brasil.

No mais, nunca é pouco lembrar que os processos democráticos exigem esforços adicionais em países federativos com altos graus de assimetrias em diversos sentidos com o nosso. Olhando para o passado recente, pode se perceber que o sucesso de experiências de orçamento participativo ou de construção de arcabouços normativos, como Lei Geral de Acesso à Informação, deveu-se muito a essa construção de baixo para cima e de forma coordenada, reunindo todos os agentes sociais.

Havendo o ânimo, a construção se faz, em uma estratégia bottom up que contribua para converter a desigualdade em diversidade, com a potencialidade de enriquecer o debate frente aos grandes problemas que assolam o cidadão, e ainda que este viva no município, a solução, na via das políticas públicas, se faz por um mosaico de atores que no processo de coordenação, aprendem e ensinam.

Sobre os autores:

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ)

Marco Antonio Carvalho Teixeira é Professor-adjunto e Coordenador do Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas da FGV EAESP

 

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