Leandro Freitas Couto

José Celso Cardoso Jr.

 

A discussão em torno do fortalecimento do planejamento estratégico governamental no Brasil deve considerar, em primeiro lugar, o quanto os processos e instrumentos do planejamento são capazes de influenciar as decisões alocativas do gasto público no curto prazo. É aí que o planejamento se concretiza, e não apenas na elaboração de planos, em geral, ou do Plano Plurianual (PPA), em particular.

Assim, a inserção do planejamento no arranjo institucional de governança orçamentária é questão central para compreender as possibilidades, limites e desafios dessa função pública. A limitada influência do PPA sobre o processo orçamentário não deve ser compreendida apenas como uma falha do instrumento ou dos processos de planejamento, mas também como resultado de um desequilíbrio de forças que rege o orçamento público e que limita não só as inserções do planejamento, mas também a incidência dos processos de monitoramento e avaliação (cf. Cardoso Jr. & Couto, 2023).

Ora, um orçamento enrijecido, cujos processos de negociação, produção, publicação e alocação são fechados em si mesmos, dialoga com mais fluência apenas com as questões fiscais, dificultando que se alimente dos esforços do planejamento. A transformação e ousadia necessárias para a recalibragem desta função pública deve olhar para esse quadro orçamentário do país, considerando o ambiente de normas – formais e informais – e os interesses, muitas vezes contraditórios, dos diferentes atores que disputam o orçamento.

Nessa linha, dois elementos se destacaram na última década quando se observa o quadro geral da governança orçamentária, influenciando negativamente as possibilidades de inserção dos elementos advindos dos processos de planejamento nas decisões alocativas do gasto público. O primeiro é a grande instabilidade de regras e práticas, com muitas e profundas mudanças no quadro normativo, muitas das quais com força constitucional. Abaixo destacamos algumas delas.

Introduzida na LDO de 2014, a impositividade das emendas parlamentares individuais ganhou espaço na constituição em 2015, com a emenda constitucional 86 (EC 86/2015). Em 2016, a LDO estendeu a impositividade para as emendas coletivas de bancada, alcançando amparo constitucional em 2019, mesmo ano em que se criava a modalidade de transferência especial para as emendas individuais. Em paralelo, ainda se observou o nascimento e o fim do novo regime fiscal, que instaurou o teto de gastos com a EC 95/2016 e sua substituição pelo novo arcabouço fiscal, possibilitado pela EC 126/2023, a PEC da Transição, que elevou os pisos das emendas individuais impositivas, as quais passaram a abocanhar 2% da Receita Corrente Líquida (RCL), frente os 1,2% já garantido desde a EC 86/2015.

Essas mudanças viabilizaram a segunda grande característica do atual regime de governança orçamentária no Brasil: o fortalecimento do Poder Legislativo como definidor de prioridades no orçamento público, o que, segundo Couto e Rodrigues (2022), poderia ser caracterizado como um “semipresidencialismo orçamentário”. As emendas parlamentares passaram a ocupar, ao longo dos últimos anos, o espaço de investimentos que em outros tempos eram atos discricionários do poder executivo. Em outros termos, com a desativação do PAC a partir de 2016, o volume de investimentos do OGU passou paulatinamente para as mãos dos parlamentares. Nada mais simbólico que a discussão em torno dos valores destinados a emendas em 2024 tenha se comparado aos valores do Novo PAC, em que o governo teria algo em torno de R$ 55 bilhões e os parlamentares cerca de R$ 53 bilhões em emendas impositivas e discricionárias.

Ora, com o parlamento se apossando de parcela cada vez maior do orçamento público, sobra menos espaço para a incidência do planejamento governamental na direcionalidade do orçamento. Como tal situação é fruto do modelo político representativo e da recente dinâmica parlamentar em curso no Brasil, uma das questões do momento é como conciliar e maximizar a racionalidade e a relevância das decisões técnicas que emanam do planejamento governamental com a legitimidade política e congressual do regime democrático.

Inicialmente, é preciso dizer que este quadro não é revertido com o novo arcabouço fiscal, pois mesmo mais flexível que o modelo anterior (EC 95/2016), ele ainda limita o crescimento das despesas a 70% do crescimento da Receita Corrente Líquida (RCL). Por seu turno, as emendas parlamentares, com um percentual fixo em relação à RCL, devem abocanhar parcelas cada vez maiores do orçamento. Desta maneira, não é crível esperar que haja recuo por parte do Poder Legislativo em relação ao controle de parte expressiva do orçamento. O que tem se observado, especialmente nos últimos anos, é um avanço que alcança inclusive outras unidades da federação, que vão aprovando impositividade de emendas nas câmaras de vereadores e assembleias estaduais. 

Assim, um equilíbrio mais estável na governança orçamentária brasileira depende mais de postura ativa do Executivo do que de recuo do Legislativo. E isso passa, necessariamente, pelo fortalecimento do planejamento governamental e da participação social com foco na qualificação das emendas parlamentares, algo que poderia ser obtido por meio de três processos complementares.

O primeiro diz respeito à iniciativa de atrair emendas parlamentares para programações prioritárias ou estratégicas do Governo, alinhadas com o plano de governo eleito e com a expectativa da população, reforçando, portanto, os pilares da democracia e do desenvolvimento nacional. Esta iniciativa seria, portanto, resultado concreto de um esforço de planejamento governamental, não só na definição das agendas prioritárias de governo, mas também na articulação política com o Congresso Nacional para que some esforços e destine emendas parlamentares em complemento ao orçamento desses programas e ações. Isso envolve, inclusive, a criação de mecanismos que permitam elevar a atratividade dessas programações do ponto de vista parlamentar. Assim, o desenho da política que possa conferir maior celeridade na execução, constituição de critérios previsíveis e adequados, bem como a possibilidade de disponibilização de contrapartidas podem constituir um cardápio para robustecer essa estratégia.

Essa, aliás, é a estratégia que tem sido adotada pelo Governo Federal para atrair emendas parlamentares ao Novo PAC em 2024. Pressionado pelo calendário eleitoral, que limita a transferência de recursos aos entes nos 3 meses que antecedem as eleições municipais, a atratividade do Novo PAC para recepcionar emendas parlamentares passa justamente pela celeridade de execução, dado que as propostas habilitadas no PAC seleções já estão analisadas pelos órgãos e, portanto, podem ter o seu início de execução mais rápido. De outra parte, o mecanismo de selecionar uma proposta já priorizada pelo Governo para receber o apadrinhamento parlamentar e, com isso, gerar um bônus para o parlamentar poder indicar uma proposta habilitada, foi instrumento inovador para atrair a atenção do Congresso.

O segundo processo complementa o primeiro: trata-se da criação de critérios adequados para a destinação de emendas parlamentares a cada política pública. A carência de serviços públicos e investimentos é evidente ao longo de todo o território nacional. A criação de critérios de elegibilidade de municípios para a destinação de emendas, de acordo com os parâmetros de cada política e as metas expressas pelo planejamento setorial e o plano plurianual, podem implicar em maior eficiência e eficácia do gasto público, com resultados e impactos mais perceptíveis na população, com ganhos compartilhados para o poder executivo e também para os parlamentares que alocam as suas emendas e desejam, ao fim e ao cabo, que essa percepção se reverta em votos para eles mesmos nas próximas eleições.

Por fim, o terceiro ingrediente desta construção envolveria a constituição de um cardápio enxuto de programações prioritárias que poderia ser objeto de emendas parlamentares, com mecanismos próprios de atratividade, aptos a serem submetidos a algum tipo de participação e priorização pela população. Assim, as demandas apresentadas pelos municípios para aproveitar as transferências voluntárias de recursos do governo federal e das emendas parlamentares, passariam pelo crivo da sociedade que indicaria, dentre as opções postas, quais delas entende como prioridades para o seu município.

Este aspecto abre oportunidades promissoras para a retomada e empoderamento da participação social como elemento central para o país enfrentar o rentismo e o fiscalismo que se apoderaram da gestão das finanças públicas nacionais. Para tanto, é preciso entender que o gasto público real (ou primário) não só estimula como complementa o gasto privado. Isso para dizer que é impossível avançar para o tema da participação no orçamento, se não mudarmos a nossa compreensão de finanças públicas e sua relação com o desenvolvimento local e nacional.

Importante notar que estamos vivendo uma situação no Brasil que requer uma mudança de paradigma e uma mudança de postura do governo, da sociedade e do congresso em relação a essa temática. Um orçamento participativo revisitado, nesse contexto, ganha importância adicional ao de simplesmente formalizar canais de interação da sociedade na definição das prioridades de sua alocação. Ele ganha um peso estratégico diferenciado e ainda mais importante na medida em que passa a ser um componente necessário para contestar justamente os dois pilares da lógica atual vigente, ou seja, o fiscalismo e o rentismo incrustrados nas concepções teórica e política dominantes, cf. aprofundado em Cardoso Jr. e Couto (2023).

Nós precisamos de mais participação e participação mais qualificada no Orçamento, inclusive, para demonstrar que é possível modificar as prioridades subterrâneas e fazer com que as finanças se voltem para o desenvolvimento da sociedade e do país, em vez de a sociedade viver em função de gerar superávits primários, que favorecem apenas setores e atores privilegiados da economia. Desta perspectiva, o orçamento participativo tem diante de si um desafio adicional àqueles tradicionais em termos da sua operacionalização. Fazer com que essa participação seja qualificada por uma perspectiva transformadora do arranjo institucional macroeconômico e normativo de finanças públicas, numa perspectiva de contestar a dominância financeira, a privatização das finanças, em suma, o fiscalismo e o rentismo, que estão na base da lógica esterilizante da capacidade de agir do Estado brasileiro na atualidade.

Nesta perspectiva, a adoção de dinâmicas participativas para apoiar os processos de alocação das emendas parlamentares, em linha com programações prioritárias do governo, seria uma inovação com potencial de desencadear situações do tipo ganha-ganha. Com essa lógica, o poder executivo, promotor do processo, seria um dos beneficiados, ao lado dos parlamentares que alocassem seus recursos nas prioridades indicadas pela população. Da mesma forma, o poder local, muitas vezes o responsável direto pela implementação dos projetos e mais próximo da população, também ganharia politicamente, ao lado da própria população beneficiada. Para tanto, mecanismos de mobilização presencial precisariam estar lado a lado com instrumentos que viabilizem a votação por plataformas digitais. O fortalecimento da democracia direta no país não deve ser negligenciado, em um contexto de grande polarização política.

Esse processo de qualificação das emendas parlamentares significaria a recuperação de espaço do Poder Executivo no orçamento público sem afrontar ou reduzir o espaço do Poder Legislativo. Para tanto, é necessário reconhecer a centralidade técnica e política do planejamento governamental, considerando a formação da agenda, a definição de prioridades, a articulação política - parlamentar e federativa - e a promoção da participação social. A chave é a criação de processos cooperativos entre os poderes e interfederativo, em torno de agendas que dialoguem com as necessidades concretas e prementes da população.

Sua instituição deve ser gradual e constante, acompanhando o processo de reconstrução das capacidades estatais em planejamento e execução das políticas públicas. Após um grande período de fragilização das estruturas organizacionais, dos processos e dos instrumentos de planejamento, tendo o parlamento assumido o papel de definidor de prioridades do orçamento público, os desafios para a retomada do protagonismo do Governo são múltiplos num arranjo orçamentário bastante diferente do que existia há uma década. A mudança para melhor do quadro institucional atual requer experimentalismo e inovação, ousadia e transformação.

Referências

COUTO, L. & RODRIGUES, J. (orgs). Governança Orçamentária no Brasil. Brasília: IPEA, 2022.

CARDOSO JR., J. C. & COUTO, L. (orgs). Ousadia e Transformação: apostas para incrementar as capacidades do Estado e o desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Contracorrente, 2023.

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

Sobre os autores:

Leandro Freitas Couto é Analista de Planejamento e Orçamento

José Celso Cardoso Jr. é Técnico em Planejamento e Pesquisa do IPEA

 

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