Caio César de Medeiros Costa

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Rodrigo Luppi dos Passos

 

Consta no folclore da administração pública uma frase célebre, de autoria do dirigente alemão Otto von Bismarck (1815-1898): “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis.” Autor de outras frases emblemáticas, essa ideia direcionada as leis também pode ser aplicada ao tema desse artigo: a formulação dos programas governamentais.

O programa é a materialização de uma política pública, que surge como resposta a uma agenda que emerge pela força de pressões de grupos, inclusive nos pleitos eleitorais, arregimentando força política, orçamento e estrutura, para se converter em entregas no plano concreto pela implementação.

Nem sempre a coisa segue essa linearidade, e um programa também pode ser a concretização de uma ideia a “procura de um problema”, como nos diz a teoria “garbage can model”, desenvolvido por Cohen, March e Olsen (1972), argumentando que escolhas de políticas públicas são feitas como se as alternativas estivessem revirando uma “lata de lixo”, em uma “anarquia organizada”, onde os participantes vão despejando problemas e soluções à medida que vão sendo gerados.

Esses programas governamentais demandam um desenho, um arranjo que coordene atores, com objetivos nem sempre convergentes, e ações que devem ser necessárias e possíveis de serem implementadas. Soma-se ainda nesse desafio a limitação de recursos, os inúmeros pressupostos legais, para assim atingir seus objetivos. Necessitam de viabilidade, de legitimidade, de avaliação dos riscos e de tecnologia factível que suporte a sua execução, como requisitos mínimos para o sucesso dessas iniciativas, em uma visão mais pragmática, e um tanto reducionista dessa questão.

Infelizmente, a cultura no país de formulação de programas carece de uma certa racionalidade, com dificuldades explícitas até de se enxergar as iniciativas dos governos como um programa. Improviso, falta de coordenação, ausência de estudos prévios, diagnósticos precários, de debate com as partes, bem como mal elaborados mecanismos de incentivo são algumas das mazelas que afetam o processo de formulação de programas no Brasil, um retrato do processo histórico de gestão de políticas públicas.

Por vezes surgem ideias sem base empírica, sem paralelo no mundo, que viram programas somente pelo seu aspecto típico, sem dialogar com problemas reais. Outras vezes, modelos estrangeiros são importados de forma acrítica e sem percepção da realidade local, gerando ações que não são consoantes com a estrutura legal e social do país. E desse rol de situações, resta por vezes o desperdício, o fracasso e o prejuízo de recursos públicos.

Muitas vezes o que se vê são prescrições de políticas e programas distantes tanto da análise racionalista, quanto da análise argumentativa. Argumentos e evidências são deixados de lado, e a arena pública passa a ser dominada por uma grande cacofonia que impede o debate e descarta toda e qualquer evidência, que não aquela que atenda aos interesses dos grupos de pressão dominantes. Atualmente, no Brasil, aqueles que mais conseguem mobilizar as redes sociais.

O que ao final define a alternativa, e consequentemente, os elementos envolvidos na construção do programa, pode nesse caso ser definido por diversas questões que não necessariamente se alinham com os interesses da sociedade e a geração de valor público. Pululam soluções mágicas e ideias estapafúrdias no debate público, que por vezes são ilusórias pela sua funcionalidade, mas que não resistem a um teste de suficiência metodológica e de evidências.

Não se trata, aqui, de idealização da racionalidade técnica. Pressões e demandas políticas, bem como ideologias e valores, são parte do jogo, podem e devem estar presentes nos processos de formulação. O improviso e a adaptação são indissociáveis. Há muito já se foi superada a ideia de que o insulamento burocrático era uma condição necessária à capacidade estatal.

Entretanto, uma certa racionalidade termina por ser indispensável. Da mesma forma, os tempos e movimentos de um governo, envolto em pressões da sociedade, da necessidade de respostas rápidas, das relações com o congresso e a necessidade dos atores políticos demonstrarem força, são traços indeléveis dos governos, e dependendo da sua participação nesse equilíbrio entre técnica e política, podem esses fatores não permitir que os processos funcionais de formulação de programas sejam postos em prática.

Dessa forma, é necessário equilíbrio e um processo de organização que coordene as pressões políticas, mas ao mesmo tempo seja capaz de garantir que dinâmicas essenciais para a formulação de programas aconteçam em algum momento do ciclo de vida do programa , dado que nem sempre será possível a realização a priori: nitidez do problema que se quer resolver ou da oportunidade a aproveitar, entendimento das causas dos problemas, das hipóteses de mudança em que o programa se baseia, desenho da governança que envolverá o programa e planos de monitoramento e gestão de riscos aumentam a probabilidade do programa ser bem sucedido.

Tal qual na produção dos alimentos, nos programas governamentais é preciso saber qual real necessidade se busca atender, quais os insumos e as atividades envoltas na sua produção, para que dessa forma se possa prever com alguma razoabilidade os produtos criados, os resultados alcançados e o seu impacto. Apesar da metáfora, não se defende aqui que os programas sejam como receitas de produção de alimentos, mas sim a necessidade se estudar a sua formulação.

O objetivo de saber como os programas são produzidos não é tirar o sono de ninguém, como preconizou Von Bismarck sobre as salsichas. Mas sim, obter informações sobre o objetivo final de um programa e quais os caminhos devem ser trilhados para o alcance destes. Somente com uma bem elaborada formulação é que todos os interessados podem tomar decisões adequadas relacionadas ao programa, que entre outras podem se relacionar a responsabilização por um resultado não alcançado até a decisão de cooperar para que o programa resolva o problema público a que se destina.

Apesar da importância da formulação, o que se percebe é a falta de visibilidade e debate sobre essa etapa do ciclo de políticas públicas. Não basta “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, parafraseando Glauber Rocha (1939-1981), sem desprezar a importância da heurística e da subjetividade. Há de se combinar isso tudo com método, racionalidade e com a capacitação dos agentes envolvidos, em um cenário que demanda o fortalecimento de todo o ciclo de políticas públicas no debate, e especial o eleitoral. 

Em 2024, teremos mais um pleito envolvendo os cerca de 5.500 municípios brasileiros, responsáveis pela implementação de ações na área de educação, saúde, assistência, cultura, infraestrutura e até de segurança pública, entre outras. No debate eleitoral se formam agendas, se captam percepções, mas também se antecipam soluções possíveis. Nessa hora se torna evidente a fragilidade de capacidades estatais, a superficialidade do debate das políticas públicas, mas principalmente, a pouca visibilidade da questão da formulação, o que impacta toda a qualidade do processo eleitoral.

Sobre os autores:

Caio César de Medeiros Costa é Doutor em Administração Pública e Governo (FGV EAESP)

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ)

Rodrigo Luppi dos Passos é Doutorando na área de Políticas Públicas (USP)

*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Gestão, Política & Sociedade.

 

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